domingo, 19 de abril de 2015

Gênesis e o homem primitivo: o entendimento patrístico Ortodoxo Padre Serafim Rose - parte 3



Pelo homem veio a morte

            Agora chego afinal às duas mais importantes questões que são levantadas pela teoria da evolução: a natureza do mundo criado primeiro, e a natureza do homem criado primeiro, Adão.
            Eu creio que você expressa corretamente o ensinamento patrístico quando diz: “Os animais tornaram-se corrompidos por causa do homem; a lei da selva é uma conseqüência da queda do homem”. Eu também concordo com você, como já disse, que o homem, do lado de seu corpo, está vinculado com e é uma parte orgânica do todo da criação visível, e isso ajuda a fazer compreensível como a criação inteira caiu junto com ele na morte e na corrupção. Mas você acha que essa é uma prova da evolução, uma prova de que o corpo do homem evoluiu de alguma outra criatura! Certamente se este fosse o caso, os Padres inspirados por Deus teriam sabido sobre isso, e não teríamos tido que esperar pelos filósofos ateus dos séculos XVIII e XIX para descobri-lo e falar-nos sobre isso!
            Não, os santos Padres acreditavam que a criação inteira caiu com Adão, mas eles não acreditavam que Adão “evoluiu” de alguma outra criatura; por que deveria eu acreditar diferentemente dos santos Padres? Agora eu chego a um ponto muito importante. Você pergunta: “Como é que a queda de Adão trouxe corrupção e a lei da selva aos animais, já que os animais foram criados antes de Adão? Nós sabemos que os animais morriam, matavam e devoravam um ao outro desde seu primeiro aparecimento na terra e não apenas após o aparecimento do homem”.
            Como você sabe isso? Tem certeza de que isso é o que os santos Padres ensinam? Você explica seu ponto, não citando quaisquer santos Padres, mas dando uma filosofia do “tempo”. Eu certamente concordo com você que Deus está fora do tempo; para Ele tudo é presente. Mas esse fato não é uma prova de que os animais, que morreram por causa de Adão, morriam antes dele cair. O que dizem os santos Padres? É verdadeiro, decerto, que muitos santos Padres falam sobre animais como já corruptíveis e mortais; mas estão falando sobre seu estado caído. E quanto a seu estado antes da transgressão de Adão?
            Há uma pista muito significativa sobre isso no comentário do Gênesis de Santo Efrém o Sírio. Quando fala das “peles” que Deus fez para Adão e Eva após sua transgressão, Santo Efrém escreve:
Pode-se supor que os primeiros pais, tocando suas cinturas com suas mãos, descobriram que estavam vestidos com roupas feitas de peles de animais – mortos, pode ser, perante seus próprios olhos, de forma que pudessem comer sua carne, cobrir sua nudez com as peles, e em suas próprias mortes pudessem ver a morte dos seus próprios corpos. (Comentário sobre o Gênesis, cap. 3).
            Discutirei abaixo o ensinamento patrístico da imortalidade de Adão antes de sua transgressão, mas aqui estou somente interessado na questão de se os animais morriam antes da queda. Por que deveria Santo Efrém sugerir que Adão aprenderia acerca da morte por ver a morte de animais – se ele já tivesse visto a morte de animais antes de sua transgressão (que ele certamente teria de acordo com a visão evolucionária)? Mas essa é apenas uma sugestão; há outros santos Padres que falam bastante definidamente sobre esse assunto, como mostrarei num momento.
            Mas primeiro eu devo perguntar-lhe: se é verdadeiro, como você diz, que animais morriam e a criação era corrompida antes da transgressão de Adão, então como pode ser isso, que Deus olhou para Sua criação após cada um dos Dias da Criação e “viu que era bom”, e após criar os animais no Quinto e no Sexto Dias Ele “viu que eram bons”, e ao fim dos Seis Dias, após a criação do homem, “Deus viu todas as coisas que Ele tinha feito, e observou, elas eram muito boas”. Como podiam elas ser “boas” se fossem já mortais e corruptíveis, contrárias ao plano de Deus para elas? As cerimônias Divinas da Igreja Ortodoxa contêm muitas comoventes passagens de lamentação pela “criação corrompida”, bem como expressões de alegria por Cristo por Sua Ressurreição ter “reconvocado a criação corrompida”. Como poderia Deus ver essa lamentável condição da criação e dizer que era “muito boa”? E novamente, lemos no sagrado texto do Gênesis: “E Deus disse, vejam que lhes dei toda erva portando semente que está sobre toda a terra, e toda árvore que tem nela mesma o fruto da semente que é plantada, para que lhes sejam alimento. E para todas as feras selvagens da terra, e para todas as criaturas voadoras do céu, e para todo réptil rastejando sobre a terra, que têm neles o sopro da vida, ainda toda planta verde por alimento; e assim foi”. (Gn 1, 29-30). Por que, se os animais devoravam-se um ao outro antes da queda, como você diz, Deus deu a eles, até “todas as feras selvagens e todo réptil” (muitos dos quais são agora estritamente carnívoros) apenas “plantas verdes por alimento”? Apenas muito depois da transgressão de Adão, Deus disse a Noé: “E todo réptil que está vivendo seja para você carne; eu lhe dei todas as coisas como as verdes ervas”. (Gn 9, 3). Você não sente aqui a presença de um mistério que por enquanto tem-lhe escapado porque você insiste em interpretar o sagrado texto do Gênesis por meio da teoria evolucionária moderna, a qual não admitirá que os animais possam jamais ter sido de uma natureza diferente daquela que eles agora possuem?
            Mas os santos Padres claramente ensinam que os animais (bem como o homem) eram diferentes antes da transgressão de Adão! Assim, São João Crisóstomo escreve:
É claro que o homem no princípio tinha completa autoridade sobre os animais. (...) Mas que agora estamos temerosos e terrificados por feras e não temos autoridade sobre elas, isso eu não nego. (...) No princípio não era assim, mas as feras temiam e tremiam e se submetiam ao seu mestre. Mas quando pela desobediência ele perdeu a valentia, então também sua autoridade foi diminuída. Que todos os animais eram sujeitos ao homem, ouça o que a Escritura diz: Ele trouxe as feras e todas as criaturas irracionais para Adão ver de que iria chamá-las. (Gn 2, 19) E ele, vendo as feras perto dele, não fugiu, mas como um outro senhor ele dá nomes aos escravos que lhe são sujeitos, já que deu nomes a todos os animais. (...) Isso já é suficiente como prova de que as feras no princípio não eram assustadoras para o homem. Mas há uma outra prova não menos poderosa e ainda mais clara? Qual? A conversa da serpente com a mulher. Se as feras tivessem sido assustadoras ao homem, então vendo a serpente a mulher não teria parado, não teria tomado seu conselho, não teria conversado com ela com tal destemor, mas imediatamente ao vê-la teria ficado terrificada e fugiria. Mas observe, ela conversa e não está com medo; não houve ainda então nenhum medo. (Homilias sobre o Gênesis, IX, 4).

            Não está claro que São João Crisóstomo lê a primeira parte do texto do Gênesis “como está escrita”, como um relato histórico do estado do homem e da criação antes da transgressão de Adão, quando tanto o homem quanto os animais eram diferentes do que agora são? Similarmente, São João Damasceno nos diz que
Àquele tempo a terra trouxe dela mesma frutos para o uso dos animais que estavam sujeitos ao homem, e não havia nem chuvas violentas sobre a terra, nem tormentas invernais. Mas após a queda, quando ele foi comparado a feras insensatas e foi tornado parecido com elas (...) então a criação sujeita a ele levantou-se contra esse regulador apontado pelo Criador. (Da Fé Ortodoxa, Livro II, cap. 10).
            Talvez você vá objetar que no mesmo lugar São João Damasceno também diz, falando da criação dos animais, “Tudo era para o adequado uso do homem. Dos animais, alguns eram para alimento, como cervos, ovelhas, gazelas, e outros assim”. Mas você deve ler essa passagem no contexto; pois ao fim desse parágrafo nós lemos (bem como você notou que Deus criou o homem masculino e feminino preconhecendo a transgressão de Adão):
Deus sabia todas as coisas antes que fossem feitas e Ele viu que o homem em sua liberdade cairia e seria entregue à corrupção; porém para o adequado uso do homem Ele fez todas as coisas que estão no céu e na terra e na água.

            Você não vê a partir das Santas Escrituras e dos santos Padres que Deus cria criaturas de forma que elas vão ser úteis ao homem mesmo em seu estado corrompido? Mas Ele não as cria já corrompidas, e elas não estavam corrompidas até que Adão pecou.
            Mas voltemos agora para um santo Padre que fala bem explicitamente sobre a incorrupção da criação antes da desobediência de Adão: São Gregório o Sinaíta. Ele é um santo Padre da mais alta vida espiritual e solidez teológica, que atingiu as alturas da visão Divina. Na russa Philokalia ele escreve:
A criação presentemente existente não foi originalmente criada corruptível; mas depois ela caiu sob a corrupção, sendo feita sujeita à vaidade, segundo a Escritura, não voluntariamente, mas por razão dele, Adão, que a sujeitou na esperança da renovação de Adão que se tinha tornado sujeito à corrupção. (Rm 8, 20) Ele que renovou e santificou Adão renovou a criação também, mas Ele ainda não a libertou da corrupção. (Capítulos sobre Mandamentos e Dogmas, 11).

            Mais além, o mesmo Padre nos dá notáveis detalhes sobre o estado da criação (em particular, do Paraíso) antes da transgressão de Adão:
Éden é um lugar no qual foi plantado por Deus todo tipo de Planta fragrante. Não é nem completamente incorruptível, nem inteiramente corruptível. Localizado entre corrupção e incorrupção, está sempre tanto abundante em frutos quanto desabrochando com flores, tanto maduro quanto imaturo. As árvores e frutos maduros são convertidos em fragrante terra que não exala nenhum odor de corrupção, como fazem as árvores deste mundo. Isso é pela abundância da graça da santificação que é constantemente despejada lá. (Ibid., 10).

            (Essa passagem é expressa no tempo verbal do presente – porque o paraíso em que Adão foi posto ainda está em existência, mas não é visível para os nossos órgãos normais dos sentidos).
            O que dirá você dessas passagens? Estará você ainda tão certo, como a “uniformitária” filosofia evolucionária ensina, de que a criação antes da queda era exatamente a mesma que é agora após a queda? A Santa Escritura nos ensina que “Deus não fez morte” (Sb 1,13), e São João Crisóstomo ensina que
Bem como a criatura se tornou corruptível quando seu corpo se tornou corruptível, assim também quando seu corpo for incorrupto, a criatura também o acompanhará e se tornará correspondente a ele. (Homilias sobre Romanos, XIV, 5).

            E São Macário o Grande diz:
Adão foi posto como o senhor e rei de todas as criaturas. (...) Mas após seu cativeiro, foi feita cativa junto com ele a criação que o serviu e se submeteu a ele, porque através dele a morte veio a reinar sobre toda alma. (Homilia 11)

            O ensinamento dos santos Padres, se o aceitamos “como está escrito” e não tentamos reinterpretá-lo por meio de nossa sabedoria humana, é claramente que o estado das criaturas antes da transgressão de Adão era bem diferente do seu estado presente. Eu não estou tentando dizer-lhe que eu sei precisamente qual era esse estado; esse estado entre corrupção e incorrupção é muito misterioso para nós que vivemos inteiramente em corrupção. Um outro grande Padre Ortodoxo, São Simeão o Novo Teólogo, ensina que a lei da natureza que nós agora conhecemos é diferente da lei da natureza antes da transgressão de Adão. Ele escreve:
As palavras e decretos de Deus se tornam a lei da natureza. Portanto também o decreto de Deus pronunciado por Ele como resultado da desobediência do primeiro Adão – isto é, o decreto para ele de morte e corrupção – tornou-se a lei da natureza, eterna e inalterável. (Homilia 38, edição Russa).

            Qual era a “lei da natureza” antes da transgressão de Adão, qual de nós homens pecadores pode definir? Certamente a ciência natural, vinculada inteiramente a sua observação do presente estado da criação, não pode investigar isso.
            Então como sabemos qualquer coisa em absoluto sobre isso? Obviamente, porque Deus revelou alguma coisa disso a nós através da Sagrada Escritura. Mas sabemos também, dos escritos de São Gregório o Sinaíta (e outros escritos que devo citar abaixo), que Deus revelou algo além do que está nas Escrituras. E isso me traz a uma outra extremamente importante questão levantada pela evolução.

A natureza do homem

            E agora eu chego à final e mais importante questão que é levantada para a teologia Ortodoxa pela moderna teoria da evolução: a natureza do homem, e em particular a natureza do homem criado primeiro, Adão. Eu digo que essa é a “mais importante questão” levantada pela evolução porque a doutrina do homem, antropologia, toca mais proximamente na teologia, e aqui talvez se torne mais possível identificar teologicamente o erro do evolucionismo. È bem conhecido que a Ortodoxia ensina muito diferentemente do Catolicismo Romano a respeito da natureza humana e da Divina graça, e agora eu devo tentar mostrar que a visão teológica da natureza do homem que está implicada na teoria da evolução, e que você explicitamente expôs em sua carta, não é a visão Ortodoxa do homem, mas é muito mais próxima da visão Católica Romana; e essa é apenas uma confirmação do fato de que a teoria da evolução, longe de ser ensinada por algum Padre Ortodoxo, é simplesmente um produto da mentalidade apóstata Ocidental e até, a despeito do fato de que originalmente fosse uma “reação” contra o Catolicismo Romano e o Protestantismo, tem profundas raízes na tradição escolástica Papista.
            A visão da natureza humana e da criação de Adão que você expôs em sua carta é muito influenciada por sua opinião de que Adão, em seu corpo, era uma “fera evoluída”. Essa opinião você obteve, não dos santos Padres (pois você não pode encontrar um Padre que acreditasse nisso, e eu já mostrei que os Padres de fato acreditavam bastante “literalmente” que Adão foi criado do pó e não de qualquer outra criatura), mas da ciência moderna. Olhemos então, antes de tudo, para a visão patrística Ortodoxa da natureza e do valor do conhecimento científico, secular, particularmente em relação ao conhecimento teológico, revelado.
            Essa visão patrística é muito bem exposta pelo grande Padre hesicasta, São Gregório Palamás, que foi forçado a defender a teologia e a experiência espiritual Ortodoxas precisamente contra um racionalista Ocidental, Barlaam, que desejava reduzir a experiência e o conhecimento espirituais do hesicasmo a algo atingível por ciência e filosofia. Ao respondê-lo, São Gregório expôs princípios gerais que são bem aplicáveis no nosso próprio dia, quando cientistas e filósofos pensam que podem entender os mistérios da criação e da natureza do homem melhor que a teologia Ortodoxa. Ele escreve:
O princípio da sabedoria é ser suficientemente sábio para distinguir e preferir à sabedoria que é baixa, terrestre e vã, aquela que é verdadeiramente útil, celeste e espiritual, aquela que vem de Deus e conduz a Ele e que torna conformáveis a Deus aqueles que a adquirem. (Defesa dos Santos Hesicastas, tríade I, 2).
            Ele ensina que a segunda sabedoria sozinha é boa em si mesma, enquanto a primeira é tanto boa quanto má:
A prática das graças de diferentes linguagens, o poder da retórica, conhecimento histórico, a descoberta dos mistérios da natureza, os vários métodos da lógica (...) todas essas coisas são ao mesmo tempo boas e más, não apenas porque elas são manifestadas de acordo com a idéia daqueles que a usam e facilmente tomam a forma que lhes é dada pelo ponto de vista daqueles que as possuem, mas também porque seu estudo é uma boa coisa apenas à medida que desenvolva no olho da alma uma visão penetrante. Mas é ruim para alguém que se entregue a esse estudo a fim de permanecer nele até a idade avançada. (Ibid., tríade I, 6).
           
Mais além, ainda:
Se um dos Padres diz a mesma coisa que dizem aqueles de fora, a concordância é apenas verbal, o pensamento sendo muito diferente. Aquele, de fato, tem, segundo Paulo, a mente de Cristo (I Cor 2,16), enquanto estes expressam no máximo um raciocínio humano. Como o céu é distante da terra, assim é Meu pensamento distante dos seus pensamentos, disse o Senhor (Is 55, 9). Além disso, mesmo se o pensamento desses homens fosse às vezes o mesmo daqueles de Moisés, Salomão, ou seus imitadores, em que isso os beneficiaria? Qual homem de sólido espírito e pertencente à Igreja poderia disso extrair a conclusão de que seu ensinamento vem de Deus? (Ibid., tríade I, 11).

            Do conhecimento secular, São Gregório escreve,
Nós proibimos esperar qualquer precisão que seja no conhecimento das coisas Divinas; pois não é possível extrair dele nenhum ensinamento certo no assunto de Deus. Pois “Deus o fez tolo”. (Ibid., tríade I, 12).

            E esse conhecimento pode também ser prejudicial e lutar contra a verdadeira teologia:
O poder dessa razão que foi feita tola e não-existente entra em batalha contra aqueles que aceitam as tradições em simplicidade de coração; despreza os escritos do Espírito, atrás do exemplo de homens que os trataram descuidadamente e puseram a criação contra o Criador. (Ibid., tríade I, 15).

            Dificilmente poderia haver um melhor relato que esse do que os modernos “evolucionistas Cristãos” tentaram fazer pensando-se mais sábios que os santos Padres, usando o conhecimento secular para reinterpretar o ensinamento da Sagrada Escritura e dos santos Padres. Quem pode deixar de ver que o espírito racionalista, naturalista de Barlaam é bastante próximo daquele do evolucionismo moderno?
            Mas note que São Gregório está falando de conhecimento científico o qual, em seu próprio nível, é verdadeiro; este só se torna falso por guerrear contra o mais alto conhecimento da teologia. É a teoria da evolução mesmo verdadeira cientificamente?
            Eu já falei nesta carta da natureza dúbia da evidência científica para a evolução em geral, sobre a qual eu ficaria contente de lhe escrever numa outra carta. Aqui eu devo dizer uma palavra especificamente sobre a evidência científica para a evolução humana, já que aqui nós começamos a tocar no reino da teologia Ortodoxa.
            Você diz em sua carta que está feliz de não ter lido os escritos de Teilhard de Chardin e outros exponentes da evolução no Ocidente; você aproxima essa questão toda “simplesmente”. Mas eu temo que isso seja onde você cometeu um erro. Está bem e bom aceitar os escritos da Santa Escritura e dos santos Padres simplesmente; esse é o jeito com que deveriam ser aceitos, e é o jeito como eu tento aceitá-los. Mas por que deveríamos aceitar os escritos de modernos cientistas e filósofos “simplesmente”, meramente tomando sua palavra quando eles nos dizem que algo é verdadeiro – mesmo se essa aceitação nos forçar a mudar nossas visões teológicas? Pelo contrário, devemos ser muito críticos quando os homens sábios modernos nos dizem como devíamos interpretar as Santas Escrituras. Nós devemos ser críticos não apenas a respeito de sua filosofia, mas também a respeito da “evidência científica” que eles pensam que suporta sua filosofia; pois freqüentemente essa “evidência científica” é ela mesma filosofia.
            Isso é especialmente verdadeiro do cientista Jesuíta Teilhard de Chardin; pois não somente ele escreveu a mais completa e influente filosofia e teologia baseada na evolução, mas ele esteve também intimamente ligado com a descoberta e interpretação de quase toda a evidência fóssil para a “evolução do homem” que foi descoberta em seu tempo de vida.
            E agora eu devo perguntar-lhe uma questão científica muito elementar: qual é a evidência para a “evolução do homem”? Nessa questão também eu não posso entrar em detalhe nesta carta, mas eu vou discuti-la brevemente. Eu posso escrever mais em detalhe mais tarde, se você quiser.
            A evidência fóssil científica para a “evolução do homem” consiste em: Homem Neandertal (muitos espécimes); Homem Peking (muitas caveiras); os “homens” chamados Java, Heidelberg, Piltdown (até 20 anos atrás), e os recentes achados na África: todos extremamente fragmentários; e poucos outros fragmentos. A evidência fóssil total para a “evolução do homem” poderia ser contida numa caixa do tamanho de um pequeno esquife, e é de partes amplamente separadas da terra, sem indicação confiável de nem relativa (muito menos “absoluta”) idade, e sem qualquer indicação de como esses diferentes “homens” estavam conectados um com o outro, seja por descendência ou parentesco.
            Mais além, um desses “ancestrais evolucionários do homem”, “Homem Piltdown”, foi descoberto 20 anos atrás ter sido uma fraude deliberada. Agora é um fato interessante que Teilhard de Chardin fosse um dos “descobridores” do “Homem Piltdown” – um fato que você não vai encontrar na maioria dos livros ou em biografias dele. Ele “descobriu” o dente canino dessa criatura fabricada – um dente que já tinha sido tingido com o intento de causar engano em relação a sua idade quando o encontrou! Eu não tenho evidência para dizer que Teilhard de Chardin conscientemente participou na fraude; eu acho mais provável que ele fosse a vítima do real perpetrador da fraude, e que ele estivesse tão ansioso em encontrar prova para a “evolução do homem” na qual ele já acreditava, que ele simplesmente não prestou nenhuma atenção nas dificuldades anatômicas que esse “homem” cruamente fabricado apresentava para qualquer observador objetivo. E ainda nos livros evolucionários impressos antes da descoberta da fraude, o Homem Piltdown é aceito como um ancestral evolucionário do homem sem questionamento; sua “caveira” é até ilustrada (muito embora somente fragmentos de um crânio tenham sido descobertos); e é confiantemente afirmado que “ele combina características humanas com outras muito retardadas” (Tracy L. Storer, Zoologia Geral , NY, 1951). Isso, é claro, é só o que é requerido para um “elo perdido” entre homem e macaco, e é por que a fraude Piltdown foi composta precisamente de uma mistura de ossos humanos e de macaco.     
            Algum tempo mais tarde esse mesmo Teilhard de Chardin participou na descoberta, e acima de tudo na “interpretação”, do Homem Peking. Muitas caveiras foram achadas dessa criatura, e ele era o melhor candidato que tinha sido achado até então como o “elo perdido” entre o homem moderno e os macacos. Graças a sua “interpretação” (pois então ele tinha estabelecido uma reputação como um dos principais paleontólogos do mundo), o  “Homem Peking” também entrou nos livros evolucionários como um ancestral do homem – em extremo desdém do fato incontestado de que os ossos humanos modernos foram encontrados no mesmo depósito, e para qualquer um sem preconceitos “evolucionários” estava claro que esse “Macaco Peking” tinha sido usado como comida pelos seres humanos (pois havia um buraco na base de toda caveira de “Homem Peking” pelo qual os cérebros tinham sido extraídos).
            Teilhard de Chardin também esteve conectado com a descoberta e acima de tudo a interpretação de alguns dos achados de “Homem Java”, que eram fragmentários. Na verdade, a todo lugar que ele fosse ele encontrava “evidência” que combinava exatamente com suas expectativas – nomeadamente, que o homem tivesse “evoluído” de criaturas simiescas.
            Se você for examinar objetivamente toda a evidência fóssil para a “evolução do homem”, eu creio que você vai descobrir que não há qualquer evidência conclusiva nem remotamente razoável para essa “evolução”. A evidência é acreditada ser prova para a evolução humana porque os homens querem acreditar nisso; eles crêem numa filosofia que requer que o homem tenha evoluído de criaturas simiescas. De todos os “homens” fósseis somente o Homem Neandertal (e, claro, o Homem Cro-Magnon, que é simplesmente o homem moderno) parece ser genuíno; e ele é simplesmente “Homo Sapiens”, não diferente do homem moderno quanto os homens modernos são diferentes uns dos outros, uma variação dentro de uma espécie ou tipo definido. Por favor, note que as figuras de Homem Neandertal em livros evolucionários são a invenção de artistas que têm uma idéia preconcebida de com que o “homem primitivo” deve ter parecido, baseada na filosofia evolucionária!
            Eu disse o bastante, creio, não para mostrar que eu posso “desprovar” a “evolução do homem” (pois quem pode provar ou desprovar qualquer coisa com tão fragmentária evidência?!), mas para indicar que devemos ser muito críticos mesmo das interpretações enviesadas de tão escassa evidência. Deixemos para nossos pagãos modernos e seus filósofos ficarem excitados com a descoberta de toda nova caveira, osso, ou mesmo de um único dente, sobre os quais as manchetes de jornal declaram: “Novo Ancestral do Homem Achado”. Esse nem é o reino do vão conhecimento; é o reino das modernas fábulas e contos de fadas, de um saber que verdadeiramente se tornou espantosamente tolo.
            Para onde o Cristão Ortodoxo torna se deseja aprender a verdadeira doutrina da criação do mundo e do homem? São Basílio nos diz claramente:
Por onde devo começar minha narração? Devo refutar a vaidade dos gentios? Ou devo proclamar nossa verdade? Os sábios homens dos Gregos escreveram muitas obras sobre a natureza, mas nem um relato entre eles permaneceu inalterado e firmemente estabelecido, pois o relato posterior sempre derrubou o precedente. Como conseqüência, não há necessidade para nós de refutar suas palavras: eles avaliam mutuamente por seu próprio desfazer. (Hexaemeron, I, 2).
            Como São Basílio,
Deixemos os relatos dos forasteiros para aqueles de fora, e tornemos à explicação da Igreja. (Hexaemeron, III, 3).            
            Como ele,
Examinemos a estrutura do mundo e contemplemos o universo inteiro, começando, não da sabedoria do mundo, mas do que Deus ensinou a Seu servo quando Ele falou a ele em pessoa e sem enigmas. (Hexaemeron, VI, 1).
            Agora, antes de examinar o ensinamento patrístico da natureza do homem, vou admitir que essa palavra “natureza” pode ser um pouco ambígua, e que alguém pode achar passagens onde os santos Padres usam a expressão “natureza humana” do jeito que é usada no discurso comum, como se referindo a esta natureza humana caída cujos efeitos nós observamos todo dia. Mas há um mais alto ensinamento patrístico da natureza humana, uma específica doutrina da natureza humana, dada por revelação Divina, a qual não pode ser entendida ou aceita por alguém que acredite em evolução. A doutrina evolucionária da natureza humana, baseada numa visão do “senso comum” da natureza humana caída, é o ensinamento Católico Romano, não o Ortodoxo.
            A doutrina Ortodoxa da natureza humana é exposta mais concisamente nas Instruções Espirituais de Abba Dorotheus. Esse livro é aceito na Igreja Ortodoxa como o “ABC”, o livro básico da espiritualidade Ortodoxa; é a primeira leitura espiritual que um monge Ortodoxo é dado, e permanece sua constante companhia pelo resto da sua vida, para ser lido e relido. É muito significativo que a doutrina Ortodoxa da natureza humana seja exposta na própria primeira página desse livro, porque essa doutrina é a fundação da vida espiritual Ortodoxa inteira.
            Qual é essa doutrina? Abba Dorotheus escreve nas primeiríssimas palavras de sua Primeira Instrução:
No princípio, quando Deus criou o homem (Gn 2, 20), Ele o colocou no Paraíso e o adornou com toda virtude, dando a ele o mandamento de não provar da árvore que estava no meio do Paraíso. E assim ele permaneceu lá no aproveitamento do Paraíso; em oração, em visão, em toda glória e honra, tendo sólidos sensos e estando na mesma condição natural na qual foi criado. Pois Deus criou o homem segundo Sua própria imagem, isto é, imortal, mestre de si mesmo, e adornado com toda virtude. Mas quando ele transgrediu o mandamento, comendo o fruto da árvore da qual Deus tinha lhe mandado não provar, então ele foi banido do Paraíso (Gn 3), caiu da condição natural, e caiu numa condição contra a natureza, e então ele permaneceu em pecado, em amor da glória, em amor pelos divertimentos desta idade e de outras paixões, e ele foi governado por elas, pois ele mesmo se tornou seu escravo através da transgressão.
(O Senhor Jesus Cristo) aceitou nossa própria natureza, a essência de nossa constituição, e se tornou um novo Adão na imagem de Deus Que criou o primeiro Adão; Ele renovou a condição natural e fez os sensos novamente sólidos, como eram no princípio.
Os filhos da humildade da sabedoria são: auto-repreensão, não confiar em sua própria mente, aversão de sua própria vontade; pois através deles um homem é capacitado a vir a si mesmo e retornar à condição natural através da purificação de si mesmo pelos santos mandamentos de Cristo.

            A mesma doutrina é exposta por outros Padres ascetas. Assim Abba Isaiah ensina:
No princípio, quando Deus criou o homem, Ele o colocou no Paraíso, e ele tinha então sólidos sensos, que ficavam em sua ordem natural; mas quando ele obedeceu o que o enganou, todos os seus sensos foram mudados num estado inatural, e ele foi então lançado fora da sua glória. (Da Lei Natural, Philokalia Russa, II, 1).
            E o mesmo Padre continua:
Então que quem deseja vir a sua condição natural corte fora todos os seus desejos carnais, de forma a se colocar na condição de acordo com a natureza da mente (espiritual). (Ibid. II, 2).

            Os santos Padres claramente ensinam que, quando Adão pecou, o homem não meramente perdeu algo que tivesse sido adicionado a sua natureza, mas antes a própria natureza humana foi mudada, corrompida, ao mesmo tempo em que o homem perdeu a graça de Deus. As Divinas cerimônias da Igreja Ortodoxa também, que são uma fundação do nosso ensinamento dogmático e da vida espiritual Ortodoxa, claramente ensinam que a natureza humana que agora observamos não é natural para nós, mas foi corrompida:
Curando a natureza humana, que se tinha tornado corrompida pela antiga transgressão, sem corrupção uma criança é nascida novamente. (Menaion, Dez. 22, Matinas, Theotokion do 6º Cântico do Cânon).
            E de novo:
O Criador e Senhor, desejando salvar da corrupção a corrompida natureza humana, tendo vindo habitar um útero limpado pelo Espírito Santo, é impronunciavelmente formado. (Menaion, Jan. 23, Theotokion, do 6º Cântico do Cânon de Matinas).
            Pode ser notado em tais hinos também que nossa inteira concepção Ortodoxa da Encarnação de Cristo e de nossa salvação através Dele é vinculada com um próprio entendimento da natureza humana como era no princípio, para a qual Cristo nos restituiu. Nós acreditamos que nós viveremos um dia com Ele num mundo muito parecido com o mundo que existiu, aqui nesta terra, antes da queda de Adão, e que nossa natureza será então a natureza de Adão – apenas ainda mais alta, porque tudo material e mutável será então deixado para trás.
            E agora devo mostrar-lhe mais além que mesmo sua doutrina da natureza humana como é agora neste mundo caído, é incorreta, não está de acordo com o ensinamento dos santos Padres. Talvez seja um resultado de descuidada expressão da sua parte – mas eu creio que seja provavelmente precisamente porque você foi levado ao erro por acreditar na teoria da evolução – que você escreve: “Separado de Deus o homem é de sua natureza absolutamente nada, porque sua natureza é o pó do chão, como a natureza dos animais”. Porque você acredita na filosofia da evolução, você é forçado ou a acreditar que a natureza humana seja somente uma baixa, animal natureza, como você de fato expressa por dizer que “o homem não é naturalmente a imagem de Deus”; ou no máximo (já que eu penso que você não realmente crê nisso, sendo Ortodoxo), você divide a natureza humana artificialmente em duas partes: aquela que é da “natureza” e aquela que é de Deus. Mas a verdadeira antropologia Ortodoxa ensina que a natureza humana é uma, é aquela que temos de Deus; nós não temos alguma natureza “dos animais” ou “do pó” que seja diferente da natureza com a qual Deus nos criou. E, portanto, mesmo a caída, corrompida natureza humana que temos agora não é “absolutamente nada”, como você diz, mas ainda preserva em algum grau a “bondade” em que Deus a criou. Observe o que Abba Dorotheus escreve dessa doutrina:
Nós temos naturalmente as virtudes dadas a nós por Deus. Pois quando Deus criou o homem, Ele semeou virtudes nele, como também Ele disse: “Criemos o homem à nossa imagem e semelhança” (Gn 2, 26). É dito: “À nossa imagem” visto que Deus criou a alma imortal e com autoridade sobre si mesma, e “à nossa semelhança”, referindo-se a virtudes. (...) Por natureza Deus nos deu virtudes. Mas as paixões não nos pertencem por natureza, pois elas nem mesmo têm qualquer substância ou composição. (...) Mas a alma em seu amor do prazer, tendo declinado das virtudes, instila as paixões em si mesma e as fortalece contra si mesma. (Instrução XII, Do medo de tormento futuro).
            Mais ainda, essas virtudes dadas por Deus ainda se exercem mesmo em nosso estado caído. Esse é o extremamente importante ensinamento Ortodoxo de São João Cassiano, que assim refutou o erro do Abençoado Agostinho, que de fato acreditava que o homem separado da graça de Deus era “absolutamente nada”. São Cassiano ensina em sua Décima Terceira Conferência:
Que a raça humana após a queda em verdade não perdeu o conhecimento do bem é afirmado pelo Apóstolo, que diz: Quando os gentios, que não têm a lei, fazem por natureza aquelas coisas que são da lei, esses que não têm a lei são uma lei para si mesmos, que mostram o trabalho da lei escrita em seus corações (Rm. 2, 14-16). E novamente para os fariseus Ele disse que eles podem conhecer a verdade: Por que mesmo de vocês próprios vocês não julgam aquilo que é justo? (Lc. 12, 57). Ele não teria dito isso se eles não pudessem ter discernido o que é justo por sua razão natural. Portanto não se devia pensar que a natureza humana seja capaz apenas de mal. (Décima Terceira Conferência, 12).

            Do mesmo modo, com relação ao justo Job, São Cassiano pergunta se “ele conquistou as várias armadilhas do inimigo nessa batalha à parte de sua própria virtude, mas somente com a assistência da graça de Deus” e ele responde:
Job conquistou-o por seu próprio poder. Entretanto, a graça de Deus também não abandonou Job; para que o tentador não o oprimisse com tentações acima de sua força, ela (a graça de Deus) permitiu-lhe ser tentado tanto quanto a virtude do tentado pudesse agüentar. (Conferência XIII, 14).

            Ainda, com relação ao Patriarca Abraão,
A justiça de Deus desejou testar a fé de Abraão, não aquela que o Senhor tinha instilado nele, mas aquela que ele mostrou por sua própria liberdade. (ibid.).
            É claro, a razão por que Agostinho (e o Catolicismo Romano, e o Protestantismo depois dele) acreditava que o homem não fosse nada sem a graça, era porque ele tinha uma concepção incorreta da natureza humana, baseada numa visão naturalista do homem. A doutrina Ortodoxa, por outro lado, da natureza humana como foi criada no princípio por Deus e está ainda agora preservada em parte em nosso estado caído, nos previne de cair em qualquer tão falso dualismo entre o que é “do homem” e o que é “de Deus”. Para ser claro, tudo de bom que o homem tem é de Deus, não menos sua própria natureza, pois a Escritura diz, “O que tens tu que tu não tenhas recebido” (1 Cor. 4, 7). O homem não tem “natureza animal” como tal e nunca teve; ele tem apenas a completamente humana natureza que Deus lhe deu no princípio, e que ele não perdeu inteiramente nem agora.
            É necessário citar para você a multidão de clara evidência patrística de que a “imagem de Deus”, que é para ser encontrada na alma, refere-se à natureza do homem e não é algo adicionado de fora? Seja suficiente citar o maravilhoso testemunho de São Gregório o Teólogo, mostrando como o homem por sua constituição fica entre dois mundos, e é livre para seguir qual seja o lado de sua natureza que queira:
Eu não entendo como me tornei juntado ao corpo e como, sendo a imagem de Deus, eu me tornei misturado com sujeira. (...) Que sabedoria é revelada em mim, e que grande mistério! Não foi por isso que Deus nos levou para dentro desta guerra e batalha com o corpo, que nós, sendo uma parte da Divindade (quão ousadamente o Teólogo fala da natureza do homem, tão ousadamente que nós não podemos tomar suas palavras absolutamente literalmente!) e procedendo de cima, não sejamos arrogantes e exaltemo-nos por causa de nossa dignidade, e não desdenhemos o Criador, mas direcionemos sempre nosso olhar para Ele, e de forma que nossa dignidade mantenha dentro de amarras a infirmidade juntada a nós? – De forma que saibamos que ao mesmo tempo somos tanto imensamente grandes quanto imensamente baixos, terrenos e celestes, temporais e imortais, herdeiros da luz e herdeiros de fogo ou escuridão, dependendo de para qual lado nos inclinamos? Assim foi nossa constituição estabelecida, e isso, tanto quanto posso ver, foi a fim de que o pó terreno nos humilhasse se imaginássemos nos exaltar por causa da imagem de Deus. (Homilia 14, “Do Amor pelo Pobre”).
            Essa imagem de Deus que o homem possui por sua natureza não foi completamente perdida nem entre os pagãos, como São João Cassiano ensina; não foi perdida nem hoje, quando o homem, sob a influência de moderna filosofia e evolucionismo, está tentando tornar a si mesmo numa fera sub-humana – pois mesmo agora Deus espera a conversão do homem, espera seu acordar para a verdadeira natureza humana que ele tem dentro dele.
            E isso me traz ao muito importante ponto de sua interpretação do ensinamento do Padre defensor de Deus de quase nossos próprios tempos, São Serafim de Sarov, contido em sua famosa “Conversação com Motovilov”.
            São Serafim é meu próprio Santo patrono, e foi nossa Irmandade de São Germano que primeiro publicou o texto completo dessa “Conversação” na língua russa em que foi falada (pois a edição pré-revolucionária estava incompleta), bem como outras de suas palavras genuínas que tinham até então estado impublicadas. Então você deve estar certo de que nós não acreditamos que ele ensinasse uma falsa doutrina da natureza do homem, uma que contradiga aquela de outros santos Padres. Mas examinemos o que São Serafim mesmo diz. Como você corretamente o cita, São Serafim diz:
Muitos explicam que quando diz na Bíblia que quando Deus soprou o sopro de vida na face de Adão o homem criado primeiro foi criado por Ele a partir do pó do chão, deve significar que até então não havia nem alma humana nem espírito em Adão, mas somente a carne criada do pó do chão. Essa interpretação é errada, pois o Senhor criou Adão a partir do pó do chão com a constituição que nosso querido paizinho, o santo Apóstolo Paulo descreve: Sejam seu espírito e alma e corpo preservados sem culpa à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo (1 Tes. 5, 23). E todas essas partes da nossa natureza foram criadas a partir do pó do chão, e Adão não foi criado morto, mas um ser ativo como todas as outras criaturas animadas de Deus vivendo na terra. O ponto é que se o Senhor Deus não tivesse soprado depois em sua face o sopro de vida (isto é, a graça de nosso Senhor Deus o Espírito Santo...), Adão teria permanecido sem ter dentro dele o Espírito Santo Que o eleva à dignidade da semelhança de Deus. Quão perfeito ele tivesse sido criado e superior a todas as outras criaturas de Deus como a coroa da criação na terra, ele teria sido exatamente como todas as outras criaturas, as quais, embora tenham um corpo, alma e espírito, cada uma de acordo com seu tipo, ainda não têm o Espírito Santo dentro delas. Mas quando o Senhor Deus soprou na face de Adão o sopro de vida, então, de acordo com a palavra de Moisés, Adão tornou-se uma alma vivente (Gn. 2, 7), isto é, completamente e em todo jeito como Deus, e, como Ele, para sempre imortal.
            Essa é a única citação patrística que você dá que parece suportar sua visão de que o homem era primeiro uma fera, e então (mais tarde no tempo) recebeu a imagem de Deus e se tornou homem. É nisso de fato que você deve acreditar se aceita a teoria da evolução, e eu fico feliz em ver que você tem a coragem de expressar claramente o que todos os “evolucionistas Ortodoxos” na verdade acreditam (mesmo que de uma maneira antes confusa), mas são muitas vezes receosos de expressar abertamente por medo de ofender outros crentes Ortodoxos que são “ingênuos” e em sua “simplicidade” se recusam a acreditar que o homem na verdade de fato é “descendente de macacos” ou de criaturas simiescas.
            Mas aqui recordemos as palavras de São Gregório Palamás que eu já citei:
Se um dos Padres diz a mesma coisa que aqueles de fora, a concordância é somente verbal, o pensamento sendo muito diferente. Aquele, de fato, tem, de acordo com Paulo, a mente de Cristo (1 Cor. 2, 16), enquanto ou outros expressam no máximo um raciocínio humano. (...) Que homem de sólido espírito e pertencente à Igreja poderia disso concluir que seu ensinamento vem de Deus? (Defesa dos Santos Hesicastas, tríade I, 11).
            E de fato, eu devo dizer-lhe que você mal-entendeu completamente o ensinamento de São Serafim, que não está em absoluto ensinando o que a doutrina da evolução ensina. Isso, posso mostrar citando tanto o claro ensinamento de outros santos Padres quanto aquele do próprio São Serafim.
            Mas primeiro eu devo explicar o que pode parecer para um racionalista ser uma “contradição” entre o ensinamento de São Serafim e aquele de outros Padres. Primeiro, devemos deixar claro que quando São Serafim fala do homem como sendo composto de “espírito e alma e corpo” ele não está contradizendo aqueles muitos outros santos Padres que falam da natureza humana como meramente “alma e corpo”; ele está meramente fazendo uma distinção entre diferentes aspectos da alma e falando deles separadamente, como muitos santos Padres também falam. Segundo, ao dizer que o “sopro de vida” que Deus soprou na face de Adão é a graça do Espírito Santo, ele não está contradizendo os muitíssimos santos Padres que ensinam que o “sopro de vida” é a alma, mas está apenas dando uma interpretação talvez mais profunda e precisa dessa passagem da Escritura.
            Mas está ele na verdade fazendo a distinção racionalista que você faz entre a natureza do homem que existia “antes” desse sopro, e a graça que foi comunicada por ele? A teologia Ortodoxa aceita a rígida dicotomia que o ensinamento Católico Romano faz entre “natureza” e “graça”, como se o homem soubesse tudo que há para saber sobre esses dois grandes mistérios?
            Não; a teologia Ortodoxa não conhece tão rígida dicotomia, e é por isso que os estudiosos racionalistas acham tantas “contradições” entre diferentes Padres Ortodoxos nesse assunto, como ficará claro por um único exemplo: a imortalidade pertence à alma humana por natureza ou por graça? Diferentes Padres Ortodoxos que são de igual autoridade respondem diferentemente a essa questão, não porque ensinem diferentemente sobre o homem e assim “contradigam” um ao outro, mas porque eles aproximam da questão de lados diferentes. Aqueles que aproximam a questão da natureza do homem mais a partir do lado da presente natureza humana corrompida dizem que a alma do homem é imortal por graça; enquanto aqueles (especialmente os Padres ascetas e místicos) que iniciam com a visão da natureza do homem como era no princípio, vêem a alma antes como imortal por natureza. Pode até ser que um e o mesmo Padre veja a questão agora de um e agora do outro lado, como faz São Gregório de Nissa quando ele diz num lugar (Resposta a Eunomius, Segundo Livro): “Aquele que raciocina, e é mortal, e é capaz de pensamento e conhecimento, é chamado ‘homem’”; mas num outro lugar ele diz: “O homem no curso de sua primeira produção não uniu à própria essência de sua natureza a sujeição à paixão e à morte” (Da Virgindade, cap. XII). Esse grande Padre se “contradiz”? É claro que não.
            O que pertence ao Adão criado primeiro por natureza e o que por graça? Não façamos falsas distinções racionalistas, mas admitamos que nós não entendemos completamente esse mistério. Natureza e graça, ambas vêm de Deus. A natureza do Adão criado primeiro era tão exaltada que nós podemos apenas debilmente compreende-la agora por nossa própria experiência da graça, a qual nos foi concedida pelo Segundo Adão, nosso Senhor Jesus Cristo; mas o estado de Adão era também mais alto que qualquer coisa que possamos imaginar mesmo a partir de nossa própria experiência da graça, pois mesmo sua alta natureza foi feita ainda mais perfeita pela graça, e ele era, como São Serafim diz, “completamente e em todo jeito como Deus, e, como Ele, para sempre imortal”.
            O que está absolutamente claro, e o que é suficiente para nós sabermos, é que a criação do homem – de seu espírito e alma e corpo, e da Divina graça que aperfeiçoou sua natureza – é um único ato de criação, e não pode ser artificialmente dividida, como se uma parte dela tivesse vindo “primeiro”, e uma outra parte “mais tarde”. Deus criou o homem na graça, mas nem as Santas Escrituras nem os santos Padres nos ensinam que essa graça veio mais tarde no tempo que a criação da natureza do homem. Esse ensinamento pertence ao escolasticismo Latino Medieval, como eu mostrarei abaixo.
            São Serafim somente aparenta ensinar essa doutrina, porque ele fala em termos de simples narrativa do sagrado texto do Gênesis. Mas está bastante claro, como São Gregório Palamás diz, que “a concordância é somente verbal, o pensamento sendo muito diferente”. Para sermos convencidos disso nós temos apenas que examinar como os santos Padres nos instruem a interpretar a sagrada narrativa do Gênesis neste ponto.
            Felizmente para nós, essa mesma questão foi levantada e respondida pelos santos Padres. Essa resposta é resumida para nós por São João Damasceno:
A partir da terra (Deus) formou seu corpo e por Sua própria impregnação deu-lhe uma alma racional e compreensiva, que afinal dizemos ser a divina imagem. (...) O corpo e a alma foram formados ao mesmo tempo – não um antes e o outro depois, como os alucinados de Orígenes diriam. (Da Fé Ortodoxa, II, 12).
            Tudo o que eu disse nesta carta, estritamente derivado dos santos Padres, virá como surpresa para muitos Cristãos Ortodoxos. Aqueles que leram alguns dos santos Padres vão talvez perguntar por que eles “não ouviram isso antes”. A resposta é simples: se eles leram muitos dos santos Padres, eles encontraram a doutrina Ortodoxa de Adão e da criação; mas eles têm estado a interpretar os textos patrísticos até agora através dos olhos da moderna ciência e filosofia, e portanto têm sido cegados ao verdadeiro ensinamento patrístico. É também verdadeiro que a doutrina do corpo de Adão e da natureza do mundo criado primeiro é ensinada mais claramente e explicitamente nos mais tardios Padres de exaltada vida espiritual tais como São Simeão o Novo Teólogo e São Gregório o Sinaíta, e os escritos desses Padres não são amplamente lidos nem hoje em Grego ou Russo, e dificilmente algum deles existe, mesmo, em outras línguas. (De fato, muitas das passagens que eu citei de São Gregório o Sinaíta foram mal-traduzidas na Philokalia inglesa).
            Eu fiquei muito interessado ao ler em sua carta que você expõe o correto ensinamento patrístico de que “A criação de Deus, mesmo a natureza angélica, tem sempre, em comparação com Deus, algo material. Anjos são incorpóreos em comparação conosco, homens biológicos. Mas em comparação com Deus eles são também criaturas materiais e corporais”. Esse ensinamento, o qual é exposto mais claramente nos Padres ascetas tais como São Macário o Grande e São Gregório o Sinaíta, ajuda-nos a entender o “corpo espiritual” com o qual nós devemos ser revestidos na idade futura, o qual é de algum jeito do pó, terreno, mas não tem umidade ou grosseria, como São Gregório o Sinaíta ensina; e também nos ajuda a entender aquele terceiro estado de nosso corpo, aquele que o Adão criado primeiro tinha antes de sua transgressão. Do mesmo modo, essa doutrina é essencial em nosso entendimento da atividade de seres espirituais, Anjos e demônios, mesmo no mundo presente corruptível. O grande Padre Ortodoxo Russo do século XIX, Bispo Inácio Brianchaninov, devota um volume inteiro de suas obras reunidas (volume 3) a esse assunto, e a comparar a autêntica doutrina patrística Ortodoxa com a moderna doutrina Católica Romana, como exposta em fontes latinas do século XIX. Sua conclusão é que a doutrina Ortodoxa sobre essas matérias – sobre Anjos e demônios, céu e inferno, Paraíso – muito embora nos seja dada pela sagrada tradição somente em parte, todavia é bastante precisa naquela parte que podemos saber; mas o ensinamento Católico Romano é extremamente indefinido e impreciso. A razão para essa indefinição não está longe para se buscar: a partir do tempo em que o papalismo começou a abandonar o ensinamento patrístico, gradualmente ele se entregou à influência de conhecimento e filosofia mundanos, primeiro aqueles de tais filósofos como Barlaam, e então da ciência moderna. Mesmo pelo século XIX o Catolicismo Romano não mais tinha um certo ensinamento próprio sobre esses assuntos, mas cresceu acostumado a aceitar o que quer que a “ciência” e sua filosofia dizem.
            Ai!, nossos Cristãos Ortodoxos do dia presente, e não menos aqueles que foram educados em “academias teológicas”, têm seguido os Católicos Romanos nisso, e têm chegado a um estado similar de ignorância do ensinamento patrístico. É por isso que mesmo sacerdotes Ortodoxos são extremamente vagos acerca do ensinamento Ortodoxo de Adão e do mundo criado primeiro e cegamente aceitam o que quer que a ciência diga sobre essas coisas. Pode ser que o Seminário da Santa Trindade em Jordanville, Nova York, seja a única escola Ortodoxa remanescente onde a tentativa é feita de ensinar os santos Padres não “academicamente” mas como partes viventes de toda uma tradição; e é significativo que um Professor deste seminário, Dr. I. M. Andreyev, que é também um Doutor de Medicina e Psicologia, tenha expressado impressamente a mesma idéia que eu tenho tentado comunicar acima, e que parece além do entendimento daqueles que aproximam os santos Padres a partir da sabedoria deste mundo em vez do contrário. Dr. Andreyev escreve:
O Cristianismo tem sempre visto o estado presente da matéria como sendo o resultado de uma queda no pecado. (...) A queda do homem mudou o todo da natureza, incluindo a natureza da matéria mesma, que foi amaldiçoada por Deus (Gn. 3, 17). (“Conhecimento científico e verdade cristã”, in Calendário Nacional São Vladimir para 1974, NY, p. 69).
            O professor Andreyev acha que Bergson e Poincaré relancearam essa idéia nos tempos modernos – mas é claro que foram somente nossos santos Padres Ortodoxos que falaram claramente e com autoridade sobre isso.
            O vago ensinamento sobre Paraíso e criação do Catolicismo Romano – e daqueles Cristãos Ortodoxos que estão sob influência Ocidental nesta matéria – tem fundas raízes no passado da Europa Ocidental. A tradição escolástica Católica Romana, mesmo à altura de sua glória medieval, já ensinava uma falsa doutrina do homem, e uma que sem dúvida abriu o caminho para a posterior aceitação do evolucionismo, primeiro no Ocidente apóstata, e então nas mentes de Cristãos Ortodoxos que estão insuficientemente conscientes de sua tradição patrística e então têm caído sob influências estrangeiras. De fato o ensinamento de Tomás de Aquino, diferente do ensinamento patrístico Ortodoxo, em sua doutrina do homem é bastante compatível com a idéia de evolução que você advoga.
            Tomás de Aquino ensina que
No estado de inocência, o corpo humano era nele mesmo corruptível, mas podia ser preservado da corrupção pela alma. [Ainda:] Pertence ao homem gerar descendência, por causa de seu corpo naturalmente corruptível. (Suma Teológica, I, Quest. 98, Art. 1).
            Novamente:
No Paraíso o homem teria sido como um anjo em sua espiritualidade da mente, porém com uma vida animal em seu corpo. (Ibid. I, 98, 2). O corpo do homem era indissolúvel, não por razão de qualquer vigor intrínseco de imortalidade, mas por razão de uma força sobrenatural dada por Deus à alma, pela qual foi capacitado a preservar o corpo de toda corrupção tanto quanto ele mesmo permaneceu sujeito a Deus. (...) Esse poder de preservar o corpo da corrupção não era natural à alma, mas o dom da graça. (Ibid. I, 97, 2). Agora está claro que tal sujeição do corpo à alma e dos poderes mais baixos à razão (como Adão tinha no Paraíso) não era da natureza, ou de outro jeito teria permanecido após o pecado. (Ibid. I, 95, 1).
            Essa última citação mostra claramente que Tomás de Aquino não sabe que a natureza do homem foi modificada após a transgressão. Ainda:
A imortalidade do primeiro estado era baseada numa força sobrenatural na alma, e não em qualquer intrínseca disposição do corpo. (Ibid. I, 97, 3).
            Tão longe está Tomás de Aquino da verdadeira visão Ortodoxa do mundo criado primeiro que ele o entende, como fazem os modernos “evolucionistas Cristãos”, somente a partir do ponto de vista deste mundo caído; e assim ele é forçado a acreditar, contra o testemunho de santos Padres Ortodoxos, que Adão naturalmente dormia no Paraíso (Ibid. I, 97, 3), e que ele evacuava matéria fecal, um sinal de corrupção:
Alguns dizem que no estado de inocência o homem não teria tomado mais alimento que o necessário, de forma que não teria havido nada supérfluo. Isso, no entanto, não é razoável supôr, como implicando que não haveria matéria fecal. Portanto havia necessidade de evacuar o excedente, ainda assim disposto por Deus de forma a não ser inadequado. (Ibid. I, 97, 4).
            Quão baixa é a visão daqueles que tentam entender a criação de Deus e o Paraíso quando seu ponto de partida é sua observação de todo dia deste mundo presente caído! Como contra a esplêndida visão de São Serafim da invulnerabilidade do homem aos elementos no Paraíso, observe a explicação puramente mecanicista de Tomás de Aquino da questão racionalista: o que acontecia quando um corpo pesado vinha em contato com o leve corpo de Adão?
No estado de inocência, o corpo do homem podia ser preservado de sofrer dano de um corpo pesado, parcialmente pelo uso de sua razão pela qual ele podia evitar o que fosse danoso; e parcialmente também pela divina providência, que assim o preservava, que nada de uma natureza danosa poderia vir sobre ele sem aviso. (Ibid. I, 97, 3).
            Finalmente, Tomás de Aquino ele mesmo não ensina, mas outros escolásticos medievais (Guilherme de Auxerre, Alexandre de Hales, Boaventura) ensinaram, a própria fundação das visões “Cristãs evolucionárias” do dia presente sobre a criação do homem:
O homem não foi criado na graça, mas a graça foi conferida a ele subseqüentemente, antes do pecado. (Ver Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, 95, 1).
            Numa palavra: de acordo com a doutrina Ortodoxa, que vem da visão Divina, a natureza de Adão no Paraíso era diferente da natureza humana presente, tanto em corpo quanto em alma, e essa exaltada natureza foi aperfeiçoada pela graça de Deus; mas de acordo com a doutrina latina, que está baseada em deduções racionalistas a partir da presente criação caída, o homem é naturalmente corruptível e mortal, exatamente como ele é agora, e seu estado no Paraíso era um dom especial, sobrenatural.
            Eu citei todas essas passagens de uma autoridade heterodoxa, não a fim de argumentar sobre detalhes da vida de Adão no paraíso, mas meramente para mostrar quão longe alguém corrompe a maravilhosa visão patrística de Adão e do mundo criado primeiro, quando o aproxima com a sabedoria deste mundo caído. Nem a ciência nem a lógica podem dizer-nos uma coisa sobre o Paraíso; e ainda muitos Cristãos Ortodoxos são tão intimidados pela ciência moderna e sua filosofia racionalista que eles são na verdade temerosos de ler seriamente os primeiros capítulos do Gênesis, sabendo que os “homens sábios” modernos encontram tantas coisas ali que são “dúbias” ou “confusas” ou precisam ser “reinterpretadas”, ou que se pode obter a reputação de ser um “Fundamentalista” se alguém ousa ler o texto simplesmente, “como está escrito”, como todos os santos Padres o lêem.
            O instinto do simples Cristão Ortodoxo é sólido quando ele recua da “sofisticada” visão da moda de que o homem é descendente de um macaco ou de qualquer outra criatura mais baixa, ou mesmo (como você diz) que Adão deve ter tido o corpo mesmo de um macaco. São Nectário de Pentápolis corretamente expressou sua justa raiva contra aqueles que tentam “provar que o homem seja um macaco, do qual eles gabam que são descendentes”. Essa é a visão da santidade Ortodoxa, que sabe que a criação não é como os modernos homens sábios a descrevem por sua vã filosofia, mas como Deus a revelou a Moisés “não em enigmas”, e como os santos Padres a viram em visão. A natureza do homem é diferente da natureza do macaco e nunca foi misturada com ela. Se Deus, pelo bem da nossa humildade, tivesse desejado fazer uma tal mistura, os santos Padres, que viram a própria “composição das coisas visíveis” em Divina visão, o teriam sabido.
            Quanto mais permanecerão Cristãos Ortodoxos em cativeiro a essa vã filosofia Ocidental? Muito é dito acerca do “cativeiro Ocidental” da teologia Ortodoxa em séculos recentes; quando nós perceberemos que é um muito mais drástico “cativeiro Ocidental” no qual todo Cristão Ortodoxo se encontra hoje, um prisioneiro desamparado do “espírito dos tempos”, da corrente dominante de filosofia mundana a qual é absorvida no próprio ar que respiramos numa sociedade apóstata, com ódio a Deus? Um Cristão Ortodoxo que não está conscientemente lutando contra a vã filosofia desta idade simplesmente a aceita nele mesmo, e está em paz com ela porque seu próprio entendimento da Ortodoxia é distorcido, não se conforma com o padrão patrístico.
            Os sofisticados, mundanamente sábios riem daqueles que chamam a evolução de “heresia”. Verdade, a evolução não é, estritamente falando, uma heresia; nem é o Hinduísmo, estritamente falando, uma heresia: mas como o Hinduísmo (com o qual está de fato relacionada, e o qual provavelmente teve uma influência em seu desenvolvimento) o evolucionismo é uma ideologia que é profundamente estranha ao ensinamento do Cristianismo Ortodoxo, e envolve alguém em tantas doutrinas e atitudes erradas que seria de longe melhor se fosse simplesmente uma heresia e pudesse assim ser facilmente identificado e combatido. O evolucionismo está intimamente vinculado com toda a mentalidade apóstata do roto “Cristianismo” do Ocidente; é um veículo de toda a “nova espiritualidade” e “novo Cristianismo” nos quais o diabo está agora lutando para submergir os últimos Cristãos verdadeiros. Ele oferece uma explicação da criação alternativa àquela dos santos Padres; permite a um Cristão Ortodoxo sob sua influência ler as Santas Escrituras e não as entender, automaticamente “ajustando” o texto para caber em sua preconcebida filosofia da natureza. Sua aceitação não pode deixar de envolver a aceitação também de explicações alternativas de outras partes da Divina revelação, de um automático “ajuste” de outros textos Escriturais e patrísticos para afinar com a moderna “sabedoria”.
            Eu creio que em seu sentimento pela criação de Deus, como você o descreve em sua carta, você seja Ortodoxo; mas por que você sente que deve corromper esse sentimento com a moderna sabedoria, e justificar essa nova ideologia que é tão estrangeira à Ortodoxia? Você escreveu muito comoventemente “contra falsa união”; como desejamos que você agora se tornasse exatamente tão grande zelota “contra falsa sabedoria”, e dissesse aos Cristãos Ortodoxos falantes de grego que aceitaram essa nova doutrina demasiado incriticamente que nossa única sabedoria vem dos santos Padres, e tudo o que a contradiz é uma mentira, mesmo se chama a si de “ciência”.
            Eu rogo seu perdão se qualquer coisa que falei parece áspera; eu tentei apenas falar a verdade como a vejo nos santos Padres. Se cometi quaisquer erros em minhas citações dos santos Padres, eu rogo-lhe que os corrija, mas que não deixe nenhum pequeno erro guardá-lo de ver o que eu tentei dizer. Há muito mais que eu poderia dizer sobre esse assunto, mas eu vou esperar por sua réplica antes de fazê-lo. Acima de tudo, eu tenho o desejo sincero de que tanto você como nós possamos ver o verdadeiro ensinamento patrístico sobre esse assunto, o qual é tão importante para toda nossa visão de mundo Ortodoxa. Eu peço suas orações por mim e por nossa Irmandade.

Para mais sobre esse assunto, leia Genesis and Early Man: The Orthodox Patristic Understanding, por Pe. Serafim Rose.   

Traduzido do site: [http://www.orthodoxinfo.com/phronema/evolution_frseraphim_kalomiros.aspx]

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Gênesis e o homem primitivo: o entendimento patrístico Ortodoxo Padre Serafim Rose - parte 2

Exegese patrística

            No que escrevi sobre Adão e Eva, você notará que citei santos Padres que interpretam o texto do Gênesis de um jeito que pode antes ser chamado “literal”. Estou correto em supôr que você gostaria de interpretar o texto mais “alegoricamente”, quando você diz que acreditar na imediata criação de Adão por Deus é “uma concepção muito restrita das Sagradas Escrituras”? Este é um ponto extremamente importante, e estou verdadeiramente espantado de descobrir que “evolucionistas Ortodoxos” absolutamente não sabem como os santos Padres interpretam o livro do Gênesis. Estou certo de que você concordará comigo que não somos livres para interpretar as Santas Escrituras como nos agrada, mas devemos interpretá-las como os santos Padres nos ensinam. Receio que nem todos que falam sobre Gênesis e evolução prestem atenção nesse princípio. Algumas pessoas estão tão preocupadas em combater o Fundamentalismo Protestante que vão a medidas extremas para refutar qualquer um que deseja interpretar o sagrado texto do Gênesis “literalmente”; mas ao assim fazer elas nunca se referem a São Basílio ou outros comentadores do livro do Gênesis, que estabelecem muito claramente os princípios que devemos seguir ao interpretar o texto sagrado. Eu receio que muitos de nós que professamos seguir a tradição patrística sejamos às vezes descuidados, e facilmente caiamos em aceitar nossa própria “sabedoria” no lugar do ensinamento dos santos Padres. Eu firmemente acredito que visão de mundo e filosofia inteiras para um Cristão Ortodoxo podem ser encontradas nos santos Padres; se escutarmos seu ensinamento em vez de pensarmos que somos sábios o suficiente para ensinar os outros a partir de nossa própria “sabedoria”, não nos perderemos.
            E agora eu lhe peço que examine comigo a mais importante e fundamental questão: como os santos Padres nos ensinam a interpretar o livro do Gênesis? Ponhamos de lado nossas preconcepções sobre interpretações “literais” ou “alegóricas”, e vejamos o que os santos Padres nos ensinam sobre ler o texto do Gênesis.

Não podemos fazer melhor do que começar com o próprio São Basílio, que escreveu tão inspiradamente dos Seis Dias da Criação. No Hexaemeron, ele escreve:
Aqueles que não admitem o comum significado das Escrituras dizem que água não é água, mas alguma outra natureza, e eles explicam uma planta e um peixe de acordo com sua opinião. Eles descrevem também a produção de répteis e animais selvagens, modificando-a segundo suas próprias noções, exatamente como os interpretadores de sonhos, que interpretam para seus próprios fins as aparições vistas em seus sonhos. Quando eu ouço grama, eu penso em grama, e da mesma maneira eu entendo tudo como é dito, uma planta, um peixe, um animal selvagem, e um boi. Certamente, não estou envergonhado do Evangelho. (...) Já que Moisés não deixou ditas, como inúteis para nós, coisas de modo nenhum pertinentes a nós, devemos por essa razão acreditar que as palavras do Espírito são de menor valor que a tola sabedoria (daqueles que escreveram sobre o mundo)? Ou devo eu antes dar glória a Ele Que não manteve nossa mente ocupada com futilidades, mas ordenou que todas as coisas fossem escritas para a edificação e orientação de nossas almas? Essa é uma coisa da qual eles me parecem ter estado inconscientes, quem tentou por falsos argumentos e interpretações alegóricas conferir à Escritura uma dignidade de sua própria imaginação. Mas a deles é a atitude de alguém que se considera mais sábio que as revelações do Espírito e introduz suas próprias idéias na pretensão de uma explicação. Portanto, que Ela seja entendida como foi escrita. (Hexaemeron, IX, 1).

            Claramente, São Basílio está nos alertando para guardarmo-nos de “justificar” coisas no Gênesis as quais são difíceis para nosso senso comum entender; é muito fácil para o “esclarecido” homem moderno fazer isso, mesmo se ele é um Cristão Ortodoxo. Tentemos, por isso, ao máximo entender a sagrada Escritura como os Padres a entendem, e não de acordo com nossa “sabedoria” moderna. E não fiquemos satisfeitos com as visões de um santo Padre; examinemos as visões de outros santos Padres também.
            Um dos comentários patrísticos padrão sobre o livro do Gênesis é aquele de Santo Efrém o Sírio. Suas visões são todas as mais importantes para nós, já que ele foi um “Oriental” e conhecia bem a língua hebraica. Modernos eruditos dizem-nos que “Orientais” são dados a interpretações “alegóricas”, e que o livro do Gênesis do mesmo modo deve ser entendido desse jeito. Mas vejamos o que Santo Efrém diz em seu comentário sobre o Gênesis:
Ninguém devia pensar que a Criação de Seis Dias é uma alegoria; é do mesmo modo impermissível dizer que o que parece, segundo o relato, ter sido criado no curso de seis dias, foi criado num único instante, e também que certos nomes apresentados nesse relato ou significam nada, ou significam alguma outra coisa. Pelo contrário, deve-se saber que bem como o céu e a terra os quais foram criados no princípio são de fato o céu e a terra e não alguma outra coisa entendida sob os nomes de céu e terra, assim também tudo o mais do que é dito ser criado e trazido em ordem após a criação de céu e terra não são nomes vazios, mas a própria essência das naturezas criadas corresponde à força desses nomes. (Comentário sobre o Gênesis, cap. I).
            Esses são ainda, é claro, princípios gerais; olhemos agora as muitas aplicações específicas desses princípios por Santo Efrém.
Embora tanto a luz como as nuvens tenham sido criadas no piscar de um olho, ainda tanto o dia quanto a noite do primeiro dia continuaram por 12 horas cada. (Ibid.)
            Novamente:
Quando no piscar de um olho a costela (de Adão) foi tirada e do mesmo modo num instante a carne tomou seu lugar, e a costela descoberta tomou a completa forma e toda a beleza de uma mulher, então Deus levou-a e apresentou-a a Adão. (Ibid.)
            Está bastante claro que Santo Efrém lê o livro do Gênesis “como está escrito”; quando ele ouve “a costela de Adão”, entende “a costela de Adão”, e não entende isso como um modo alegórico de dizer alguma coisa juntamente. Do mesmo modo, ele bem explicitamente entende os Seis Dias da Criação como sendo apenas seis dias, cada um com 24 horas, que ele divide numa “tarde” e “manhã” de 12 horas cada.
            Você escreve: “Desde que Deus criou o tempo, criar algo ‘instantaneamente’ seria um ato contrário a Sua própria decisão e vontade. (...) Quando falamos sobre a criação de estrelas, plantas, animais e homem, não falamos sobre milagres – não falamos sobre as intervenções extraordinárias de Deus na criação, mas sobre o curso ‘natural’ da criação”. Eu me pergunto se você não está substituindo aqui alguma “sabedoria moderna” pelo ensinamento dos santos Padres? O que é o princípio de todas as coisas além de um milagre? Eu já lhe mostrei que São Gregório de Nissa, São Cirilo de Jerusalém, São Gregório o Teólogo, e São João Damasceno (e de fato todos os Padres) ensinam que o primeiro homem Adão apareceu de um jeito diferente da natural geração de todos os outros homens; assim também as primeiras criaturas, segundo o texto sagrado do Gênesis, apareceram de um jeito diferente de todos os seus descendentes: apareceram, não por natural geração, mas pela palavra de Deus. A moderna teoria da evolução nega isso, porque a teoria da evolução foi inventada por descrentes que desejavam negar a ação de Deus na criação e explicar a criação por meios “naturais” sozinhos. Você não vê qual filosofia está por trás da teoria da evolução?
            O que os santos Padres dizem sobre isso? Eu já citei Santo Efrém o Sírio, cujo comentário inteiro do Gênesis descreve como todos os atos criativos de Deus são feitos num instante, ainda que os “Dias” completos da criação durem 24 horas cada. Vejamos agora o que São Basílio o Grande diz sobre os atos criativos de Deus nos Seis Dias. Falando do Terceiro Dia da Criação, São Basílio diz:
A essa fala todos os densos bosques apareceram; todas as árvores brotaram. (...) Do mesmo modo, todos os arbustos ficaram imediatamente cheios de folhas e frondosos; e as assim chamadas plantas de guirlandas (...) tudo veio à existência num momento do tempo, embora não estivessem previamente sobre a terra. (Hexaemeron, V, 6).
            Novamente, ele diz:
“Que a terra traga à luz”. Este breve comando era imediatamente poderosa natureza e um elaborado sistema que trouxe à perfeição mais velozmente que nosso pensamento as incontáveis propriedades das plantas. (Hexaemeron, V, 10).
            Novamente, no Quinto Dia:
O comando veio. Imediatamente rios foram produtivos e lagos pantanosos foram férteis de espécies próprias e naturais para cada. (Hexaemeron, VH, 1).
            Do mesmo modo, São João Crisóstomo, em seu comentário do Gênesis, ensina:
Hoje Deus passa pelas águas e nos mostra que delas, por Sua palavra e comando, procederam criaturas animadas. Qual mente, diga-me, pode entender esse milagre? Qual língua será capaz de merecidamente glorificar o Criador? Ele disse apenas: Que a terra traga à luz – e imediatamente Ele a despertou para carregar fruto. (...) Como da terra Ele disse apenas: Que traga à luz – e lá apareceu uma grande variedade de flores, gramas, e sementes, e tudo ocorreu por sua palavra sozinha; então também aqui Ele disse: Que as águas tragam à luz (...) e subitamente apareceram tantos tipos de coisas rastejantes, uma tal variedade de aves, que é impossível até enumerá-las com palavras. (Homilias sobre o GênesisVII, 3).
            E novamente São Crisóstomo escreve:
Deus tomou uma única costela, é dito: mas como dessa única costela formou Ele uma criatura inteira? Diga-me, como ocorreu a tomada da costela? Como Adão não sentiu essa tomada? Você nada pode dizer sobre isso; isso é conhecido somente por Ele Quem criou. (...) Deus não produziu uma nova criação, mas tomando de uma criação já existente uma certa pequena parte, dessa parte Ele fez uma criatura inteira. Que poder o Altíssimo Artista Deus tem, de produzir dessa pequena parte (uma costela) a composição de tantos membros, fazer tantos órgãos do sentido, e formar um inteiro, perfeito e completo ser. (Homilias sobre o Gênesis, XV, 2-3).
            Se você quiser, posso citar muitas outras passagens dessa obra, mostrando que São João Crisóstomo – não é ele o principal interpretador Ortodoxo da Sagrada Escritura – em todo lugar interpreta o sagrado texto do Gênesis como está escrito, acreditando que foi nada mais que uma real serpente (através de quem o diabo falava) que tentou nossos primeiros pais no Paraíso, que Deus de fato trouxe todos os animais perante Adão para ele nomear, e “os nomes que Adão lhes deu permanecem mesmo até agora”. (Homilia XIV, 5). [Mas de acordo com a doutrina evolucionária, muitos animais estavam extintos pelo tempo de Adão – devemos então acreditar que Adão não nomeou “todas as feras selvagens” (Gn 2, 19) mas somente as restantes delas?] São João Crisóstomo diz, quando falando dos rios do Paraíso:
Talvez um que ame falar a partir de sua própria sabedoria aqui também não vá admitir que os rios sejam de fato rios, nem que as águas sejam precisamente águas, mas vá instilar naqueles que se permitem escutá-los, que aqueles (sob os nomes de rios e águas) representavam alguma outra coisa. Mas eu lhes suplico, não prestemos atenção a essas pessoas, cerremos nossa audição contra elas, e acreditemos na Divina Escritura, e, seguindo o que nela está escrito, esforcemo-nos por preservar em nossas almas sólidos dogmas. (Homilias sobre o Gênesis, XIII, 4).

            Há necessidade de citar mais deste divino Padre? Como São Basílio e Santo Efrém, ele nos adverte:
Não acreditar no que está contido na Divina Escritura, mas introduzir alguma outra coisa de sua própria mente – isso, eu creio, sujeita aqueles que arriscam uma tal coisa a grande perigo. (Homilias sobre o Gênesis, XIII, 3).
           
Antes de continuar eu vou brevemente responder uma objeção que ouvi daqueles que defendem a evolução: eles dizem que se alguém lê toda a Escritura “como está escrita”, somente vai fazer-se ridículo. Eles dizem que se devemos crer que Adão foi de fato feito do pó, e Eva da costela de Adão, então não devemos crer que Deus tem “mãos”, que Ele “anda” no Paraíso, e tais absurdidades? Uma tal objeção não poderia ser feita por ninguém que tenha lido mesmo um único comentário dos santos Padres sobre o livro do Gênesis. Todos os santos Padres distinguem entre o que é dito sobre a criação, o que deve ser tomado “como está escrito” (a menos que seja uma óbvia metáfora ou outra figura de discurso, como “o sol conhece seu pôr” dos Salmos; mas isso seguramente não precisa ser explicado a ninguém, senão crianças), e o que é dito sobre Deus, o que deve ser entendido, como São João Crisóstomo diz repetidamente, “numa maneira conveniente a Deus”. Por exemplo, São Crisóstomo escreve:
Quando ouvirem, amados, que Deus plantou o Paraíso no Éden no leste, entendam a palavra “plantou” adequadamente a Deus: isto é, que ele comandou; mas concernindo as palavras que seguem, acreditem precisamente que o paraíso foi criado e naquele mesmo lugar onde a Escritura o determinou. (Homilias sobre o Gênesis, XIII, 3).
            São João de Damasco explicitamente descreve as interpretações alegóricas do paraíso como sendo parte de uma heresia, aquela dos Origenianos:
Eles explicam paraíso, céu e tudo mais num sentido alegórico. (Das Heresias, 64).
            Mas o que, então, vamos entender daqueles santos Padres de profunda vida espiritual que interpretam o livro do Gênesis e outras Santas Escrituras num sentido espiritual ou místico? Se nós mesmos não tivéssemos ido tão longe da compreensão patrística da Escritura, isso não apresentaria qualquer problema que fosse para nós. O mesmo texto da Santa Escritura é verdadeiro “como está escrito” e também tem uma interpretação espiritual. Observe o que o grande Padre do deserto, São Macário o Grande, um clarividente santo que levantava os mortos, diz:
Que o Paraíso foi fechado e que um Querubim foi mandado impedir o homem de entrar nele por uma espada flamejante: disso nós cremos que de modo visível foi de fato exatamente como está escrito, e ao mesmo tempo encontramos que isso ocorre misticamente em toda alma. (Sete Homilias, IV, 5).
            Nossos modernos “estudiosos patrísticos”, que se aproximam dos santos Padres não como fontes vivas da tradição mas somente como mortas “fontes acadêmicas”, invariavelmente mal-entendem este muito importante ponto. Qualquer Cristão Ortodoxo que viva na tradição dos santos Padres sabe que quando um santo Padre interpreta uma passagem da Santa Escritura espiritualmente ou alegoricamente, ele não está com isso negando seu significado literal, o qual supõe que o leitor conheça suficientemente para aceitar. Darei um claro exemplo disso.
            O divino Gregório o Teólogo, em sua Homilia sobre a Teofania, escreve concernindo a Árvore do Conhecimento:
A árvore era, segundo minha visão, a Contemplação, na qual é somente seguro àqueles que atingiram a maturidade do hábito entrar. (Homilia sobre a Teofania, XII).
            Essa é uma profunda interpretação espiritual, e eu não sei de nenhuma passagem nos escritos desse Padre onde ele diga explicitamente que essa árvore fosse também uma árvore literal, “como está escrito”. É esta portanto uma “questão aberta”, como nossos eruditos acadêmicos podem nos dizer, se ele completamente “alegorizou” a história de Adão e o Paraíso?
            Decerto, sabemos de outros escritos de São Gregório que ele não alegorizou Adão e o Paraíso. Mas ainda mais importante, temos o direto testemunho de um outro grande Padre concernindo a própria questão de interpretação de São Gregório da Árvore do Conhecimento.
            Mas antes que eu dê esse testemunho, devo estar certo de que você concorda comigo num princípio básico da interpretação dos escritos dos santos Padres. Quando eles estão dando o ensinamento da Igreja, os santos Padres (se ao menos eles são genuínos santos Padres e não meramente escritores eclesiásticos de autoridade incerta) não se contradizem um ao outro, mesmo se para nosso fraco entendimento parece haver contradições entre eles. É o racionalismo acadêmico que põe um Padre contra o outro, traça sua “influência” um no outro, divide-os em “escolas” e “facções”, e acha “contradições” entre eles. Tudo isso é estranho à compreensão Cristã Ortodoxa dos santos Padres. Para nós o ensinamento Ortodoxo dos santos Padres é um único todo, e já que o todo do ensinamento Ortodoxo não está, obviamente, contido em nenhum único Padre (pois todos os Padres são humanos e assim limitados), encontramos partes dele num Padre e outras partes num outro Padre, e um Padre explica o que é obscuro num outro Padre; e não é nem de primária importância para nós quem disse o quê, contanto que seja Ortodoxo e em harmonia com o ensinamento patrístico inteiro. Estou certo de que você concorda comigo neste princípio e de que você não ficará surpreso que agora eu vá apresentar uma interpretação das palavras de São Gregório o Teólogo por um grande santo Padre que viveu mil anos depois dele: São Gregório Palamás, Arcebispo de Tessalônica.
            Contra São Gregório Palamás e os outros Padres hesicastas, que ensinavam a verdadeira doutrina Ortodoxa da “Luz Incriada” de Monte Tabor, levantou-se o racionalista Ocidental Barlaam. Tomando vantagem do fato de que São Máximo o Confessor em uma passagem tinha chamado essa Luz da Transfiguração um “símbolo da teologia”, Barlaam ensinava que essa Luz não era uma manifestação da Divindade, mas somente algo corporal, não “literalmente” Divina Luz, mas somente um “símbolo” disso. Isso levou São Gregório Palamás a fazer uma réplica que ilumina para nós a relação entre a interpretação “simbólica” e “literal” da Santa Escritura, particularmente com relação à passagem de São
Gregório o Teólogo que citei acima. Ele escreve que Barlaam e outros
Não vêem que Máximo, sábio em matérias Divinas, chamou à Luz da Transfiguração do Senhor um símbolo da teologia apenas por analogia e num sentido espiritual. De fato, num teologia que é analógica e disposta a elevar-nos, objetos que têm uma existência deles próprios tornam-se, em fato e em palavras, símbolos por homonímia; é neste sentido que Máximo chama essa Luz de símbolo. (...) Similarmente, Gregório o Teólogo chamou à árvore do conhecimento do bem e do mal contemplação, tendo em sua contemplação a considerado como um símbolo dessa contemplação que tem a intenção de elevar-nos; mas daí não segue que o que esteja envolvido seja uma ilusão ou um símbolo sem existência própria. Pois o divino Máximo também faz Moisés o símbolo do julgamento, e Elias o símbolo da previsão! São eles também então supostos de não ter realmente existido, mas de terem sido inventados simbolicamente? E não poderia Pedro, para um que desejasse elevar-se em contemplação, tornar-se um símbolo da fé, Tiago da esperança, e João do amor? (Defesa dos Santos Hesicastas, tríade II, 3: 21-22)
            Seria possível multiplicar tais citações que mostram o que os santos Padres na verdade ensinavam sobre a interpretação da Santa Escritura, e em particular do livro do Gênesis; mas já apresentei o suficiente para mostrar que o genuíno ensinamento patrístico neste assunto apresenta graves dificuldades para um que queira interpretar o livro do Gênesis de acordo com idéias e “sabedoria” modernas, e de fato a interpretação patrística faz de todo impossível harmonizar o relato do Gênesis com a teoria da evolução, a qual requer uma interpretação inteiramente “alegórica” do texto em muitos lugares onde a interpretação patrística não o permitirá. A doutrina de que Adão foi criado, não do pó, mas por desenvolvimento de alguma outra criatura, é um ensinamento inédito que é inteiramente estranho ao Cristianismo Ortodoxo.
            A esse ponto, o “evolucionista Ortodoxo” deve tentar salvar sua posição (de acreditar tanto na moderna teoria da evolução quanto no ensinamento dos santos Padres) por um de dois caminhos.

A. Ele pode tentar dizer que nós agora sabemos mais que os santos Padres sobre a natureza e, portanto, realmente podemos interpretar o livro do Gênesis melhor que eles. Mas até o “evolucionista Ortodoxo” sabe que o livro do Gênesis não é um tratado científico, mas uma obra Divinamente inspirada de cosmogonia e teologia. A interpretação da Divinamente inspirada Escritura é claramente o trabalho de teólogos comprometidos com Deus, não de cientistas naturais, que ordinariamente não conhecem nem os primeiros princípios de tal interpretação. É verdadeiro que no livro do Gênesis muitos “fatos” da natureza são apresentados. Mas deve ser cuidadosamente notado que esses fatos não são fatos como podemos observar agora, mas um tipo inteiramente especial de fatos: a criação do céu e da terra, de todos os animais e plantas, do primeiro homem. Eu já apontei que os santos Padres ensinam muito claramente que a criação do primeiro homem Adão, por exemplo, é muito diferente da geração dos homens hoje; é somente esta que a ciência pode observar, e acerca da criação de Adão ela oferece apenas especulações filosóficas, não conhecimento científico. De acordo com os santos Padres, é possível para nós saber algo deste mundo criado primeiro, mas esse conhecimento não é acessível à ciência natural. Discutirei essa questão mais além abaixo.


B. Ou novamente, o “evolucionista Ortodoxo”, a fim de preservar a inquestionada interpretação patrística de ao menos alguns dos fatos descritos no Gênesis, pode começar a fazer modificações arbitrárias da própria teoria da evolução, a fim de fazê-la “ajustar-se” ao texto do Gênesis. Assim, um “evolucionista Ortodoxo” pode decidir que a criação do primeiro homem deve ser uma “criação especial” que não se encaixa no padrão geral do resto da criação, e assim ele pode acreditar no relato Escritural da criação de Adão mais ou menos “como está escrito”, enquanto acredita no resto da Criação de Seis Dias de acordo com a “ciência evolucionária”; enquanto um outro “evolucionista Ortodoxo” pode aceitar a “evolução” do próprio homem a partir de criaturas mais baixas, enquanto especifica que Adão, o “homem evoluído primeiro”, apareceu somente em tempos muito recentes (na escala temporal evolucionária de “milhões de anos”), assim preservando pelo menos a realidade histórica de Adão e dos outros Patriarcas, bem como a universalmente mantida opinião patrística (sobre a qual posso falar numa outra carta, se você quiser) de que Adão foi criado cerca de 7500 anos atrás. Estou seguro de que você concordará comigo que tais truques racionalistas são bastante tolos e fúteis. Se o universo “evolui”, como a moderna filosofia ensina, então o homem “evolui” com ele, e devemos aceitar o que quer que a onissapiente “ciência” nos diga acerca da idade do homem; mas se o ensinamento patrístico é correto, é correto a respeito tanto do homem quanto do resto da criação. Se você puder me explicar como alguém pode aceitar a interpretação patrística do livro do Gênesis e ainda acreditar em evolução, ficarei feliz em escutá-lo; mas você também terá que me dar melhor evidência científica para a evolução do que aquela que por enquanto existe, pois, para o observador objetivo e desapaixonado, a “evidência científica” para a evolução é extremamente fraca.