quarta-feira, 10 de setembro de 2014

HISTORIA DE UMA RUPTURA - parte I

     HISTORIA DE UMA RUPTURA - parte I
Archimandrite Placide Deseille

Desde um milênio, a unidade espiritual da cristandade européia está partida. Sua parte oriental e balcânica professam principalmente a fé ortodoxa. Sua parte ocidental, massivamente católica romana do século XI ao século XVI, conheceu no século XVI cisões internas, que deram nascimento às diversas denominações protestantes. Esta divisão é o resultado de um longo processo histórico, no curso do qual as divergências doutrinárias e os fatores políticos e culturais estavam frequentemente lado a lado.

A CRISTANDADE INDIVISÍVEL ORIGINAL

 
O Místico Ícone de Nossa Santa Igreja Ortodoxa em meio as perseguições e guerras com os hereges que não conseguiram derrota-lá

          A Igreja cristã, tal qual ela se constituía no tempo de Pentecostes sob a condução dos apóstolos e de seus sucessores imediatos, não era uma sociedade religiosa organizada e governada a partir de um centro, como o que Roma se tornará mais tarde para a cristandade ocidental. Em cada cidade evangelizada se formava uma comunidade de fiéis que se reunia cada domingo em torno de seu bispo para celebrar a Eucaristia. Cada uma destas comunidades  era considerada não como parte da Igreja, mas como a Igreja do Cristo feito presente e visível, em toda sua plenitude espiritual, dado um tal lugar, Antioquia, Corinto ou Roma por exemplo. Estas comunidades compartilhavam a mesma fé e as mesmas concepções, fundadas sobre o Evangelho, sem prejuízo de diferenças locais que não acrescentavam nada de essencial. Em cada cidade devia haver apenas um bispo, e este estava tão estreitamente ligado à sua Igreja que ele não poderia ser transferido para uma outra comunidade.
            Para que a unidade entre as diversas Igrejas locais pudesse ser mantida e para que suas identidades de fé e de disciplina fossem salvaguardadas, era necessário que trocas frequentes se estabelecessem entre elas, e que seus bispos se reunissem e que se deliberasse para reolver juntos, na fidelidade ao depósito recebido, os novos problemas que pudessem surgir. Estas assembléias de bispos requeriam uma presidência. Eis porque em cada região, o bispo da cidade principal obtinha a supremacia (preferência) sobre os demais. Ele recebia geralmente o título de “metropolita”.
            Assim se constituiriam as províncias eclesiásticas, que se reagrupariam, elas próprias, em torno de centros ainda mais importantes. Vinha-se a distinguir progressivamente cinco grandes regiões, gravitando em torno da cadeira de Roma que ocupava o primeiro lugar, reconhecida por todos (mesmo se, como nós o veremos, nem  todos concordassem sobre o alcance preciso deste primado), e dos patriarcas de Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém.
            Papas, Patriarcas e Metropolitas eram encarregados de velar com solicitude sobre as Igrejas de sua jurisdição, e de presidir o sínodo (ou concílios) provinciais ou gerais. Estes , chamados “concílios ecumênicos”, se reuniriam quando uma heresia ou uma crise grave ameaçasse a Igreja. Sete concílios ecumênicos, cujo primeiro foi o de Nicéia I (325) e o último de Nicéia II (787) estiveram assim reunidos durante o período anterior à separação da Igreja de Roma dos patriarcas orientais.
            Com exceção das Igrejas de Pérsia, da longínqua Etiópia (evangelizados desde o século IV) e da Irlanda, a quase totalidade das Igrejas cristãs se encontravam no império romano. Este império, que não era nem oriental nem ocidental, e onde as Igrejas educadas falavam tão bem o grego quanto o latim, queriam, segundo a expressão do escrivão gálio-romano Rutilus Namatianus, “fazer do universo uma única cidade”. Ele se estendia do Atlântico ao deserto sírio, do Reno e do Danúbio aos desertos da África. A cristianização deste império, no século IV, apenas reforçou este universalismo. Sem se confundir com a Igreja, o império parecia, aos cristãos, constituir o espaço onde melhor poderia se realizar o ideal evangélico de uma unidade espiritual transcendendo todas as oposições étnicas e nacionais: “Não há mais nem judeu, nem grego…pois todos vós sois um em Cristo” (Gal. 3,28).
            Contrariamente ao que se diz frequente, as invasões germânicas e o estabelecimento dos reinos bárbaros na parte ocidental do império não miram o fim pura e simplesmente desta unidade da Europa. A deposição de Rômulo Augusto em 476 não marcava “ o fim do império romano do Ocidente “, mas o fim do compartilhar administrativo do império entre dois co-imperadores, instaurados com a morte de Teodósio (395). O Ocidente voltava a ficar sob a autoridade do imperador, re-tornado único, que residia em Constantinopla.
            A maior parte do tempo, os bárbaros tinham se instalado sobre o território do Império a título de “federados” : os reis bárbaros eram por sua vez chefes de seu próprio povo e generais romanos; eles representavam a autoridade imperial sobre as terras de sua propriedade, Os reinos oriundos de invasões bárbaras – Francos, Burgondos, Godos – habitavam assim na órbita do império romano; uma continuidade estreita religava  assim, em Gália, o périodo merovíngeo ao período gálio-romano. Esses reinos germânicos eram assim uma primeira realização daquilo que Dimitri Obolensky  muito exatamente chamou de Commonwealth (comunidade) bizantina*. A dependência dos reinos bárbaros na visão do imperador, ainda que teórica e por vezes explicitamente (re)negada, guardava uma significação cultural e religiosa.
            Quando os povos eslavos vieram se estabelecer nos Balkans devastados e despovoados, a partir do século VII, é um estaturo análogo que, com suas vicissitudes, se estabelecerá entre eles e Constantinopla; ele (o estatuto) irá até mesmo à Rússia de Kiev.
            Entre as Igrejas locais desta vasta Romania, quer elas sejam situadas na sua parte ocidental quer na sua parte oriental, a comunhão subsiste durante o primeiro milênio, à exceção de alguns períodos em que os patriarcas heréticos ocuparam a cadeira de Constantinopla. Em Antioquia e Alexandria, houve entrementes, depois do concílio de Calcedônia, um patriarca monofisita ao lado daquele que continuava ligado a ortodoxia calcedoniana.

AS PRIMEIRAS FISSURAS

         O ensinamento dos bispos e dos escritores eclesiásticos que se exprimiam em latim – Hilário de Poitiers (v. 315-v. 367), Ambrósio de Milão (v.340-397), Cassiano de Marselha (v. 360-435), e muitos outros – estavam em plena consonância com aqueles dos Padres gregos: Basílio de Cesaréia (v. 329-379), Gregório de Nazianzo (v. 330-390), João Crisóstomo (v. 344-407), etc . Os ocidentais não se diferenciavam por vezes dos gregos, apenas por uma tendência mais moralisante, e uma menor penetração teológica.
            Esta harmonia doutrinária conheceu um primeiro atentado com o ensinamento de Agostinho de Hipona (354-430). Estamos aqui diante de um dos enigmas mais inquietantes da história do cristianismo. Agostinho não tinha nada de um herético. Ele possuía, no mais alto nível, o sentido e o amor pela unidade da Igreja. E, entretanto, sobre muitos pontos, Agostinho abriu o pensamento cristão à novas vias que marcaram profundamente a história do Ocidente, enquanto que elas permanecerão quase que completamente estranhas às Igrejas não-latinas.
            De um lado, Agostinho, o mais “filósofo” dos Padres da Igreja, tem uma tendência a exaltar as capacidades da inteligência humana no que concerne o conhecimento de Deus;  Ele elaborou assim, uma teologia da Santa Trindade que é a origem da doutrina latina segundo a qual o Espírito Santo provém do Pai e do Filho (em latim: Filioque). A tradição anterior ensinava apenas que o Espírito Santo retirava sua origem do Pai, como o Filho. Os gregos permaneceram sempre a esta formulação (Jn, 15,16), e verão no Filioque uma alteração da fé apóstolica. Eles desconfiarão de serem responsáveis por um relativo apagamento da pessoa do Espírito Santo e de seu papel, na Igreja do Ocidente, o que ocasionou uma certa majoração dos aspectos institucionais e jurídicos da vida da Igreja. Desde o século V, o Filioque será geralmente admitido no Ocidente, mais ou menos à exceção das Igrejas não-latinas;  mas ele não será inserido no símbolo da fé mais tarde.
            No domínio da vida moral, Agostinho insistia fortemente sobre a fraqueza do homem e sobre a toda-poderosa graça divina, ao ponto de parecer sacrificar a liberdade humana em face à predestinação divina.
            A personalidade genial e extremamente atraente de Agostinho, tem, com sua própria  vivacidade, fascinado o Ocidente, que em seguida o considerou como o maior dos Padres da Igreja e se restringe quase que a sua escola. Numa medida mais larga, o catolicismo romano e suas dissidências, o jansenismo e o protestantismo, diferirão da ortodoxia pelo que eles devem a Santo Agostinho. Os conflitos medievais entre o sacerdote e o Império, a instauração do método escolástico nas universidades medievais, o clericalismo, o anti-clericalismo na sociedade ocidental, são diferentes títulos das heranças das sequelas do agostinianismo.
            No decorrer dos séculos IV e V, uma outra divergência começa a aparecer entre a Igreja de Roma e as outras Igrejas. Para a união das Igrejas do Oriente e do Ocidente, o primado reconhecido à Igreja de Roma vinha, de um lado, de que esta Igreja tinha sido a antiga capital do Império, e de outro lado, de que ela tinha ilustrado pela pregação e martírio dos dois apóstolos principais Pedro e Paulo. Mas este primado inter pares (“entre iguais”) não fazia da Igreja de Roma a cátedra (cadeira, trono) de um governo central da Igreja universal.
           Ao contrário, em Roma, desde a segunda metade do século IV, uma concepção diferente aparecia. A Igreja romana e seu bispo reivindicavam uma autoridade que os faria a cabeça, o órgão diretor do governo da Igreja universal. Segundo a doutrina romana, este primado se fundamenta sobre a vontade expressa de Cristo, que revestiu Pedro dizendo-lhe: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mat. 16,18). O Papa de Roma não se considerava somente como o sucessor de Pedro, já contado como o primeiro bispo de Roma, mas como o vigário de Pedro que, de qualquer forma, se perpetua nele e governa através dele a Igreja universal.
         Esta concepção do primado, malgrado as resistências, será pouco a pouco aceita por todo o Ocidente. As outras Igrejas se restringirão, por essência, à concepção antiga, deixando frequentemente pairar um certo equívoco nas suas relações com a cátedra romana.

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*Dimitri OBOLENSKY, A comunidade bizantina na Europa Oriental, 500-1453, Londres 1974. Lembremos que o termo “bizantino”, utilizado habitualmente pelos historiadores, é “uma denominação posterior, desconhecida dos quais chamamos de bizantinos”. Eles se denominarão todo o tempo de romanos (Romaîoi), eles considerarão sempre como seus soberanos os imperadores romanos, sucessores e herdeiros dos Césares da velha Roma. O nome de Roma guarda  para eles seu prestígio tanto quanto dura o seu Império, e as tradições do Estado romano comandarão até o fim seus pensamentos e sua ação política” . ( Georges OSTROGORSKY, História do Estado Bizantino, trad. J. GOUILLARD, Paris 1983, p. 53).

Link para a continuação: Parte II

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