quarta-feira, 10 de setembro de 2014

HISTORIA DE UMA RUPTURA - parte II

     HISTORIA DE UMA RUPTURA - parte II

Archimandrite Placide Deseille

AS CRISES DA ALTA IDADE MÉDIA



         O século VII viveu o nascimento do Islam, rapidamente seguido de sua expansão devastadora, assegurada pela djihad, a guerra santa, que permite aos árabes conquistar o império persa, muito tempo rival temido do Império romano, assim como dos territórios dos patriarcas de Alexandria, de Antioquia e de Jerusalém.
            A partir desta época, os patriarcas destas cidades foram frequentemente obrigados  (forçados) a confiar sua administração do que restava de seus cristãos a representantes que habitavam no local, enquanto eles próprios deviam residir em Constantinopla. Resultará num relativo apagamento destes patriarcas, e aquele da capital do Império, que já tinha obtido um segundo lugar depois de Roma quando do concílio de Calcedônia (451), tornava-se assim, de qualquer forma, o árbitro supremo das Igrejas do Oriente.
            Ao subir ao trono a dinastia isauriana (717) levará a sedimentação da crise iconoclasta (726). Os imperadores Leon III , Constantino V (745-775) e seus sucessores proibiram a representação do Cristo e dos santos e a veneração dos ícones. Os opositores à doutrina imperial, os monges sobretudo, foram aprisionados, torturados, levados à morte, como no tempo dos imperadores pagãos.
        Os papas de Roma levarão o seu apoio a esses opositores, e romperam a comunhão com os imperadores iconoclastas. Estes reagirão anexando ao patriarca de Constantinopla, a Calábria, a Sicília e o Ilyricum (parte ocidental dos Balkans e norte da Grécia) que até então dependiam da (pertenciam a) jurisdição do papa de Roma.
         Ao mesmo tempo, os imperadores iconoclastas, a fim de lutar mais eficazmente contra o avanço dos árabes, se fazem promotores de um patriotismo grego bem distante a idéia universalista “romana” que havia prevalecido até então, e se desinteressaram das regiões não-gregas do Império, notadamente do norte e do centro da Itália, expostas às empreitadas dos Lombardos.
            A legitimidade da veneração dos ícones foi proclamada pelo 7º Concílio Ecumênico de Niceia (Nicéia) em 787, e, depois  de uma recidiva (queda) do iconoclasmo a partir de 813, a doutrina  ortodoxa triunfa definitivamente em Constantinopla em 843.
            A comunhão estava assim restabelecida entre Roma e o Império.  Mas a limitação da política exterior dos imperadores iconoclastas  da parte grega do Império iria levar os papas de Roma a procurar outros protetores. Até então , os papas, desprovidos da soberania territorial, tinham sido sujeitos leais ao Império. Em prosseguimento, ulcerados pela anexação do Ilyricum por Constantinopla, deixados sem defesa diante dos Lombardos, eles se voltarão para os Francos, e favorezerão, em detrimento dos Merovingeos que tinham sempre mantido relações com Constantinopla, o coroamento de uma nova dinastia, os Carolíngeos, portadores de outras ambições.
            Em 739, o papa Gregório III, preocupado em impedir o rei dos Lombardos de unificar a Itália sob sua autoridade, apela a Charles martel, prefeito do Palácio, que tentava se aproveitar da morte de Thierry IV para suplantar os Merovingeos. Em troca de sua ajuda, ele lhe prometeu renunciar a toda aliança com o imperador de Constantinopla, e se colocar sob a proteçnao exclusiva do rei dos Francos. Gregório III é o último papa que pediu ao imperador a confirmação da sua eleição. Seus sucessores notificarão a sua (eleição) à corte franca.
            Charles martel não pode satisfazer os desejos de Gregório III; mas em 754, o papa Etienne II  encontra-se em França e reencontra Pepino o Breve. Este, em 756, retoma Ravena dos Lomberdos, mas em lugar de restituí-la a Constantinopla, a remete ao papa, jogando assim as bases do que iria tornar-se os Estados da Igreja, que farão dos papas os soberanos temporais independentes. Um falso celebre, a Doação de Constantino, foi elaborada em Roma nesta época para dar uma base jurídica a esta nova situação: o imperador Constantino teria conferido ao papa Silvestre (314-335) os poderes imperiais sobre o Ocidente.
            Em 25 de dezembro do ano 800, o papa Leon III colocava a coroa imperial sobre a cabeça de Carlos Magno e lhe conferia o título de imperador, numa total independência de Constantinopla. Carlos Magno, e mais tarde os imperadores germânicos que restaurarão de qualquer forma o Império do qual ele era o fundador, não serão, no Ocidente, co-imperadores associados ao imperador de Constantinopla, segundo a fórmula instaurada no passado com a morte de Teodósio (395). Em várias  retomadas, Constantinopla proporá um compromisso indo neste sentido (nesta direção). A unidade da Romania (2) foi salvaguardado. Mas o império Carolíngeo deseja ser o único império cristão legítimo; ele intenta suplantar o império de Constantinopla, considerando-o como derrotado (roto). Eis porque os teólogos de Carlos Magno vêm a condenar como contaminados de idolatria as decisões do 7º Concílio  ecumênico sobre a veneração dos ícones, e a introduzir o Filioque no símbolo da fé de Niceno-Constantinopla. Os papas, entrementes se oporão com lucidez a estas medidas imprudentes destinadas a desqualificar a fé dos gregos.
            A ruptura era entrementes consumada, na ordem política, entre o mundo franco e o papado de um lado, e o antigo império romano de Constantinopla de outro lado. Ruptura apenas política, algumas, mas se se leva em conta o significado eminentemente teológico que havia então no pensamento  cristão da unidade do Império, expressão da unidade do povo de Deus, esta ruptura conduziria a uma cisão propriamente religiosa.
            Na segunda metade so século IX, o antagonismo entre Roma e Constantinopla se manifesta sobre um novo terreno: o pertencimento juridicional dos povos eslavos que estão em via de se converter ao cristianismo. Este novo conflito deixará traços profundos na história da Europa.
            O papa é então Nicolau I (858-867), homem enérgico, preocupado em fazer prevalecer a concepção romana do poder do papa sobre a Igreja universal, em limitar as intervenções das autoridades leigas nos casos eclesiásticos e de lutar contra as tendências centrífugas que se manifestam de um lado do episcopado ocidental. Sua ação se apoiava sobre os falsos decretos dos papas anteriores, recentemente colocadas em circulação.
            Em Constantinopla, o patriarca é Photius (858-867 e 877-886). Sua personalidade e os acontecimentos do seu patriarcado foram gravemente distorcidos pelos polêmicos antiphotianos, como o estabeleceram os historiadores recentes (3).  É um homem de uma grande cultura, profundamente ligado à fé ortodoxa e ao zelo pela Igreja. Ele tinha plenamente percebido o esforço (determinação) que representava a conversão dos eslavos. É sob sua iniciativa  que os Santos Cirilo e Métodio partirão para evangelizar a Grande Moravia. Sua obra morava será finalmente arruinada e suplantada pelas empreitadas dos missionários germâncos; mas  entrementes, eles iriam traduzir em língua eslava a liturgia e os textos bíblicos essenciais, criando para isto um alfabeto, e lançado os fundamentos da cultura dos países eslavos. Photius se ocupa igualmente da evangelização dos povos dos Balkans e dos Russos. Em 864, ele batiza Boris, khagan (rei, chefe ) dos búlgaros.
            Mas Boris, decepcionado de não ter recebido de Constantinopla uma hierarquia autônoma para seu povo, se voltará num determinado momento para Roma e acolherá os missionários latinos. Photius aprende que estes ensinavam a doutrina latina sobre a origem do Espírito Santo, e, parece-lhe, recitavam o símbolo da fé com a adição do Filioque.
            De outro lado, Nicolau I intervinha nos casos internos do patriarcado bizantino, indo até a deposição de Photius para restabelecer sobre sua cátedra, num contexto de intrigas eclesiásticas, o antigo patriarca Inácio, que tinha sido contrário a demissão (861). O imperador Miguel III e Photius reagem convocando em Constantinopla um Concílio (867), cujos autos foram destruídos, mas que, parece, condena como herética a doutrina do Filioque, declara irregulares as intervenções do papa na Igreja de Constantinopla e rompe a comunicação com eles; as reclamações foram endereçadas a Constantinopla pelos bispos ocidentais contra a “tirania”  de  Nicolau I, o concílio convida o imperador Luís o germânico a pronunciar sua deposição.
            A favor de uma revolução de palácio, Photius é deposto; um novo concílio se reúne em Constantinopla (869-870) e o condena. Este concílio será considerado no Ocidente até os nossos dias como o 8º concílio ecumênico. Posteriormente Photius re-entra na graça do imperador Basílio I, um concílio se reúne ainda mais uma vez em Constantinopla em 879, em presença dos cardeais (legados papais)  do novo papa João VIII (872-882) e reabilita Photius que tinha retomado suas funções. Ele aceita negociar a Búlgaria que retorna à jurisdição romana, o clero grego continuando no local. A Búlgaria obterá pois em breve sua independência juridicional, e permanecerá na órbita de Constantinopla. O papa João VIII escreve a Photius uma carta condenando a adição do Filioque no símbolo, sem rejeitar a doutrina ela própria; Photius não percebe sem dúvida esta sutileza e crê ter obtido ganho de causa. Não houve, contrariamente a lendas tenazes, um segundo cisma photino, e a comunhão entre Roma e Constantinopla se manteve por mais de um século.

Link para continuação: Parte III

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