quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A BÍBLIA E A SANTA TRADIÇÃO

A BÍBLIA E A SANTA TRADIÇÃO
Hieromonge Petru Putreanu

Bem-aventurado Apóstolo e Evangelista São Mateus


 Entre a Escritura e a Tradição não há nenhum conflito ou contradição. A falsa oposição entre elas apareceu apenas no século XVI, quando o protestantismo proclamou o princípio “Sola Scriptura”, dizendo que a Bíblia é a única fonte de doutrina, suficiente para a salvação. O Conselho de Trento, organizado por uma denominação também perdida da Verdade, desejando combater o princípio herético da “Sola Scriptura” disse que há duas fontes de doutrina: Escritura e Tradição, ambas inspiradas, necessárias para a salvação, com a mesma autoridade. Às vezes, os ortodoxos seguiram esse ensinamento romano-católico, mas, na verdade, ele não corresponde totalmente à percepção ortodoxa, sobretudo enquanto a conexão entre a Escritura e a Tradição. Os erros católicos baseados em uma tradição perdida, que não estava baseada na doutrina dos Apóstolos, mas na autoridade e até na pessoa do Papa, gerou uma série de peregrinações da fé da Igreja Primitiva, que levou a interpretações opostas nas comunidades protestantes. Vejam alguns exemplos quando os extremos levaram a extremos:
  • Os romano-católicos absolutizaram o papel da hierarquia, especialmente do papa.
  • Os protestantes rejeitaram o sacerdócio sacramental.
  • Os romanos-católicos exageraram o culto da Mãe de Deus.
  • Os protestantes o eliminaram.
  • Roma começou a canonizar supostos santos que viveram um estilo de vida perdido (Francisco de Assis).
  • Protestantes rejeitam o culto dos santos.
  • Os romanos-católicos racionalizaram os Sacramentos.
  • Os protestantes passaram a considera-los simples símbolos.
  • Os romanos-católicos distorceram o significado e a beleza do ícone introduzindo estátuas e pinturas renascentistas.
  • Os protestantes rejeitaram o culto das imagens.
Sabemos com certeza que não foi por falta de argumentos bíblicos que os protestantes rejeitaram tudo isso, porque as especulações sobre a existência ou inexistência da base bíblica apareceram muito mais tarde, mas porque os extremos dos romanos-católicos tinham virado muito chatos.
O significado inicial de Sola Scriptura tal como Lutero o entendeu, se refere à rejeição das inovações romano-católicas - o próprio Lutero tirou da tradição romano-católica ideias de Santo Agostinho (a predestinação, o ensino sobre o Filioque), etc. - que na verdade, não correspondem as Escrituras. O próprio Lutero, por exemplo, reconhecia o batismo dos bebês, apesar dos neoprotestantes de hoje considera-lo antibíblico. Foram os discípulos de Lutero e os neoprotestantes que deram um caráter exclusivo para o princípio “Sola Scriptura”, rejeitando qualquer ideia de tradição. Apesar disso, os protestantes e neoprotestantes também tem sua tradição e esperamos que os nossos oponentes de debate reconheçam isso.
Eles só interpretam a Bíblia, a partir da perspectiva estrita de alguns pontos de doutrina que não estão escritos na Bíblia, de alguns livros, catecismos ou revistas publicadas pela sua denominação ou da opinião de pessoas consideradas carismáticas. Assim, o princípio da Sola Scriptura, como veremos, não funciona, porque os critérios de interpretação da Bíblia estão fora dela. E se a Bíblia pudesse ser interpretada somente através dela seria impossível a aparição de várias interpretações/denominações, todas dizendo se basear em Sola Scriptura, ao mesmo tempo, se contradizendo. Apesar de terem sua tradição, os protestantes e neoprotestantes não reconhecem a Santa Tradição, trazendo contra nós falsos argumentos, que não se referem à Tradição, mas a “tradições humanas” como as chama Bíblia. Em três lugares da Escritura, onde a tradição parece ser condenada, o Senhor se refere claramente a “os ensinamentos dos homens”. (Mateus 15:2-6), (Marcos 7:3-13), (Colossenses 2:8).
E se os neoprotestanes preferem citar Mateus, eu vou citar Marcos 7:8 “Abandonais o mandamento de Deus, apegando-vos à tradição dos homens”. Aqui, podemos ver claramente não só a condenação de uma tradição, mas também o seu conteúdo a lavagem de copos e garrafões e outros hábitos, irrelevantes para a salvação. Mas, quando nós falamos sobre a Tradição, nos referimos a outra coisa e quero que entendam claramente isso. Nós não consideramos parte da Tradição aquele elemento que contradiz a Revelação Divina e a Escritura.
Agora, vamos expor a visão ortodoxa. Escritura e Tradição não podem ser vistas como duas fontes complementares de doutrina, mas como duas realidades que estão em uma relação de mútua interioridade (cada uma contém a outra). Se fizermos uma analogia a Santíssima Trindade, podemos dizer que a Escritura e a Tradição são um só ser (esse ser é a Verdade única e imutável) e ao mesmo tempo elas são distintas. É por isso que a sua separação e contraposição pode ser comparada com a separação e contraposição das Pessoas da Santíssima Trindade. Vou expandir a ideia mais tarde e quero que entendam a analogia da Santíssima Trindade somente como uma comparação.
Como a Bíblia ensina, a nossa salvação trazida por Cristo foi realizada objetivamente pela paixão, morte e ressureição de Cristo e, subjetivamente, pela nossa cooperação com Deus e a Igreja que ele fez, não com base nas ideias pessoais ou de um grupo de pessoas, mas baseada na Sua Pessoa Divino-Humana. (Mateus16: 16), (I Timóteo 3:15-16).
Ele prometeu que Sua Igreja sempre vai existir, por isso “nem as portas do inferno prevalecerão contra ele”. (Mateus 16:18). Quando Ele ascendeu ao céu, ele prometeu que “vai estar conosco até o fim do mundo” (Mateus 16:16) e que o Espírito Santo será enviado no mundo, para “levar-nos a toda a verdade” (Mateus 28:20). Esta verdade é a respeito de Cristo e é o próprio Cristo (João 14:6), que “ontem, hoje e sempre é o Mesmo” (Hebreus 13:8) e nossa fé nEle é a fé que tem sido dada para sempre aos santos (Judas 1:3). Tendo isso em conta, é evidente que a verdade da fé não pode ser: uma no primeiro século outra no século IV, outra no século XVI e outra no século XXI. Ela deve ser a mesma até o fim do mundo. Quem admitir que a verdade possa ser mudada está perdido da Verdade, pois ele está contrariando as Escrituras. É por isso que consideramos que a verdade deve ser a mesma em todos os tempos e lugares e sua manutenção intacta é devida a presença eterna de Cristo e do Espírito Santo na Igreja do Deus Vivo, que é “o pilar e o sustentáculo da Verdade” (I Timóteo 3:15). E se a verdade é uma só, também a Igreja só pode ser uma, porque uma cabeça não pode ter vários corpos, uma cabeça tem um só corpo (Efésios 1:22-23, 4:3-6).
Deduzimos que a Igreja de Cristo e sua doutrina devem existir a partir do momento da sua criação até o fim do mundo, sem interrupção. Então, pode pretender ao nome de “Igreja de Cristo” só aquela assembleia cristã que tem existido, sem interrupção e consideramos que essas condições só nossa Igreja corresponde, que se chama Ortodoxa a partir dos primeiros séculos, sendo a mesma igreja dos apóstolos e dos primeiros cristãos. Foi nesta Igreja que a Bíblia foi escrita e interpretada, junto com muitos outros ensinamentos, necessários para a salvação. Foi nela que o Espírito Santo guiou só santos bispos para corretamente o cânone bíblico (o número dos livros bíblicos, seus autores e sua ordem), rejeitando todos os apócrifos heréticos. Isso aconteceu no século IV e até mais tarde, quando a Igreja tinha as mesmas cerimônias e a mesma organização da Igreja Ortodoxa de hoje. Grandes diferenças entre a Igreja de séc. IV, quando foi proclamado o cânone bíblico, e nossa Igreja de hoje não existem. Nesta Igreja, a Bíblia era escrita, interpretada e transmitida adiante, com muitos outros ensinamentos baseados na mesma fé e pregação apostólicas. O príncipio Sola Scriptura, naquele momento não existia e não tinha como existir. Os Santos Padres que estabeleceram o cânone bíblico, foram aceitando e difundindo muitos ensinamentos que não estavam claramente expressos na Bíblia, mas que foram retirados da Santa Tradição e, mesmo assim, em acordo com a Bíblia:
  • O texto e a cerimônia da Sagrada Eucarístia, que na Bíblia não são mencionadas.
  • A tripla imersão no batismo, sugerida da Didaqué, escritura do primeiro século que muitas vezes era incluída no cânone bíblico. Sabemos que os protestanes de hoje batizam com uma só imersão e seria interessante saber de onde tiraram isso.
  • A veneração das relíquias, claramente mencionada no século II, vinculada ao martírio de São Policarpo de Esmirna, discípulo direto de São João Teólogo.
  • O sinal da cruz, confirmado no século II, etc...
De onde vêm os evangelhos que tem a Bíblia? Em que eles estão baseados, quando dizem que um Evangelho pertence a Mateus ou Marcos? De onde eles sabem que existem 27 livros autênticos no Novo Testamento e não menos ou mais? Nós dizemos que todas essas informações e, às vezes, até a maneira de interpretar as Escrituras, eles plagiaram da Santa tradição da nossa Igreja. Daqui derivam outras perguntas: Por que tiraram apenas uma parte da Tradição da Igreja e com base em que critérios eles consideram que, no estabelecimento do cânone bíblico, a Tradição da nossa Igreja foi correta e em outras a mesma Tradição, da mesma Igreja, errou? E se essa Igreja errou em alguma coisa, tendo “mancha ou ruga” (Efésios 5:27), então ela não é mais a Igreja, então o que Cristo estabeleceu foi derrotado pelo poder do diabo e Cristo era um mentiroso, pois fez falsas profecias (Mateus 16:18). E se o que Ele criou não foi destruído, então essa Igreja existiu e existe. Somente a ela temos de pertencer, porque todas as outras supostas “igrejas” são mentirosas.
Quero detalhar alguns aspectos sobre a relação Escritura-Tradição-Igreja. Depois da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos (Atos 2:1-4) os cristãos perseveravam “”na doutrina dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações” (Atos 2:42). A atividade de cada Apóstolo não era limitada a pregação, porque os Apóstolos não espalhavam Bíblias pelo mundo como os evangélicos fazem, mas eles espalhavam a Igreja de Cristo, em toda a sua integralidade. “A sabedoria de Deus, de muitos tipos, foi dada a conhecer através da Igreja” (Efésios 3:10), não através da Bíblia. E a Igreja incluiu e inclui batismo, eucaristia, sacerdócio, pregação e muitas outras coisas, me desculpem, os protestantes, às vezes, nem ouviram falar. É claro que uma ênfase especial na missão dos Apóstolos era dada a pregação da “palavra de Deus” e esta expressão se refere, em primeiro lugar, a pregação oral. (Atos 6:2,7; 11:1; 13:7,44; 16:32, 18:11). ‘A palavra de Deus’ não se referia a palavra escrita (a Bíblia) como os protestantes dizem, considerando apenas a Bíblia como “Palavra de Deus”. A Bíblia mostra claramente que  a pregação oral era a palavra de Deus e “ela crescia e se multiplicava” (Atos 12:21), ou seja foi passada adiante em formas enriquecidas pela ação do Espírito Santo.
Outro aspecto extremamente importante e crucial na pregação da Palavra de Deus consiste em que os Apóstolos exortavam os seus discípulos a manter e passar a diante o que receberam do Senhor. Aqui, aparece a noção de “tradição”, como revelação completa, dada a Igreja através dos Apóstolos e transmitida adiante, sem alterações. Vejam alguns textos bíblicos que falam sobre esse significado da tradição (paradosis) e da necessidade de guarda-la: “Louvo-vos, irmãos, que vos lembreis de mim em todas as coisas, e mantem as tradições, como eu lhes entreguei. Porque as recebi do Senhor e o que recebi repassei para vos.” (I Coríntios 11:2-23). “Irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa.” (II Tessalonicenses 2:15). “Agora, o comando-vos, irmãos, em nome do nosso Senhor Jesus Cristo, que vos aparteis de todo irmão que anda desordenadamente, e não segundo a Tradição que de nós recebeu.” (II Tessalonicenses 3:6). “Essas coisas, que vós aprendestes, recebestes, ouvistes, e vistes em mim, façam: o Deus da paz estará convosco.” (Filipenses 4:9). Não disse ‘o que leste’! Vemos que a transmissão da doutrina por meio oral e a retransmissão dela inalterada não era apenas uma altenativa para a palavra escrita, mas, na maioria das vezes, a única maneira de pregar o Evangelho, porque:
  1. Cristo não escreveu nada (com exceção de algumas palavras na areia, João 8:8) e não ordenou aos apóstolos escreverem alguma coisa.
  2. Assim como no Antigo Testamento, até Moises, ninguém escreveu nada, também os Santos Apóstolos não escreveram nada nos quase 20 anos de pregação e São João escreveu seus 5 livros no final da sua vida, após 60 anos de pregação oral, que representa mais de uma geração. Aparece a pergunta: Esse povo sabia que “Deus é amor” (I João 4:8)? A epistola de São João não estava escrita ainda.
  3. Por causa de alguns problemas concretos de algumas comunidades, mas, sobretudo por causa das heresias daquele tempo, os apóstolos escreveram apenas uma parte da doutrina, sem dizer ou deixar claro que o que eles escreveram continha tudo, mas pelo contrário, claramente mostraram que a atividade e, especialmente, a doutrina de Jesus, diretamente ou através dos Apóstolos dada, é muito mais vasta, que “nem mesmo o próprio mundo poderia conter os livros que deveriam ser escritos” (João 21:25). Em Atos 20:35, São Paulo, que não conheceu diretamente a Cristo, apresenta um ensinamento dEle que não aparece em nenhum dos quatro Evangelhos: “Há mais felicidade em dar do que em receber.” Mas oque mais chama a atenção é que, antes disso, em Atos 20:31, São Paulo diz que, durante três anos, nunca parou, dia e noite, a exortar os seus apóstolos de Éfeso, mas não encontramos na Bíblia o conteúdo dessas pregações sistemáticas durante três anos. E essas pregações continham centenas de ensinamentos que vieram diretamente de Jesus, mas que não estão escritos no Evangelho como versículo acima? Este caso não é o único, porque também não temos, na Bíblia, o conteúdo da pregação durante um ano e meio, de Corinto (Atos 18:11), que não é o mesmo que o das duas epistolas aos Coríntios que temos. Certamente, São Paulo disse aos coríntios muito mais sobre a Eucaristia do que ele disse depois, em alguns versículos do capítulo 11, da primeira epistola. Podemos pensar o mesmo sobre a celebração do domingo, sobre o qual, nas epistolas, ele fala apenas um pouco (I Coríntios 16:2).
  4. Mais do que isso, os Apóstolos preferiam falar com os seus discípulos, diretamente, cara a cara, as epistolas sendo apenas uma alternativa para os casos em que a reunião e a conversa direta não eram possíveis. Vejam apenas dois exemplos, ambos do final do século apostólico, em que vemos que os Apóstolos mesmo naquela época, preferiam a palavra oral, não a escrita: “Apesar de ter mais de coisas que vos escrever, não quis faze-lo com papel e tinta; mas espero estar entre vós e conversar de vida voz, para que a vossa alegria seja perfeita.” (II João 1:12). Se a alegria não era completa, também a graça não era completa, segundo São Paulo. “Tinha muitas coisas para te escrever, mas não quero faze-lo com tinta e pena. Espero ir ver-te em breve e então falaremos de viva voz.” (III João 1:13-14).
  5. Os Apóstolos não podiam pretender aos primeiros cristãos ter ou ler a Bíblia, pois isto era tecnicamente impossível. Foi apenas nos séculos II-III que as igrejas das cidades grandes começaram a recolher os livros do Novo Testamento, adotando também a tradução grega do Antigo Testamento (Septuaginta), mas esse processo de colheita era muito difícil, por causa do grande custo dos pergaminhos ou papiro e das grandes distâncias entre as igrejas que tinham um certo livro herdado dos Apóstolos. A possibilidade de algumas pessoas terem uma parte dos livros bíblicos era extremamente reduzida (também, a maioria não sabia ler). Se aceitarmos a concepção errada dos protestantes, podemos concluir que os primeiros cristãos não podiam ser salvos, já que não liam, nem estudavam a Bíblia. E se é assim que aconteceu nos primeiros séculos e mais tarde com a Bíblia, então uma pergunta aparece: Como e de que forma os cristãos recebiam a palavra salvadora? A resposta é muito simples na Igreja, “os bispos ordenados e ajudados pelo Espírito Santo” (Atos 20:28) estavam passando, de geração em geração, o “tesouro” recebido dos Apóstolos (II Timóteo 1:13-14). Esta sucessão apostólica incluía o direito de sacrificar a Eucaristia e o direito de pregar o Evangelho, realidades que na Igreja Primitiva, nem depois foram separadas. Irineu de Lyon, o apóstolo de São Policarpo de Esmirna, que foi o apóstolo de São João, que era o “apóstolo amado” do Senhor, disse: “A nossa fé está de acordo com a Eucaristia”. Duas gerações depois do São João, a fé e a Eucaristia estavam unidas. Assim, também são hoje, na nossa Igreja. Não falei sobre a sucessão apostólica gratuitamente, porque, na Igreja Ortodoxa, esta sucessão pode ser vista em toda parte e permanentemente. Lógica e teologicamente, esta claro que a quebra desta sucessão sacramental e doutrinária significa a separação da Igreja Apostólica, cuja cabeça é Cristo. Ficaríamos felizes em ver esta sucessão no protestantismo também, mas não temos chance. Ao enfatizar o papel da sucessão sacramental, não quero dizer uqe os leigos não conheciam a “palavra de Deus”, mas que a Bíblia era lida e pregada somente na Igreja; Igreja = a comunhão de cristão, reunidos em torno da Eucaristia e guiada pelo Espírito Santo, mas também o lugar concreto onde esses livros, que não todos tinham mas que estavam postos a disposição de todos, estavam guardados. O mito que diz que a Igreja proibia os leigos de lerem a Bíblia é uma grande mentira e só tinha alguma base para os romano-católicos, mas não para os ortodoxos. Os protestantes também desinformam com outro mito: que a Igreja proibia a tradução da Bíblia para os outros povos, mas isso também não é válido para o Oriente Ortodoxo, onde, no século II, havia a tradução siríaca, nos séculos IV-V, a tradução gótica, no século IX, a tradução eslava, no século XV, a tradução romena. Quando Lutero apareceu na face da Terra, todos os povos ortodoxos grandes tinham a Bíblia traduzida em suas línguas.
Vou fazer algumas especificações sobre a natureza e o conteúdo da Tradição. Por Santa Tradição, entendemos a revelação completa, dada a Igreja, através dos Apóstolos e passada adiante inalterada. Então, a Tradição não é um conjunto de ensinamentos ou costumes, mas “a respiração do Espírito Santo na Igreja”, presente na doutrina da Igreja, na oração e na vivência dos seus membros. Nós já argumentamos que a Bíblia é apenas uma parte desta revelação e sua importância não são devidas ao seu conteúdo exaustivo (como dizem os evangélicos, que a Bíblia contém tudo), mas ao fato de a Bíblia ser aquela parte da revelação que foi escrita diretamente pelos Apóstolos, testemunhas oculares e auditivas do Senhor e em sua base, todos os outros elementos da Tradição podem ser certificados. E por isso que a Bíblia tem autoridade: por ser uma fonte de primeira mão, não porque conteria tudo e fora de não haveria nada. Então, a Bíblia não é e não pode ser considerada autossuficiente separada da memória viva da Igreja, que é a Tradição. Tirar a Bíblia do contexto da Tradição da Igreja é tirar um versículo do contexto de um livro bíblico. Assim como separar o versículo de um contexto pode levar a perdição também separar a Bíblia da Tradição leva a perdição. Então, a Bíblia, como ela mesma diz, só pode ser interpretada através da Tradição. Vejam alguns trechos bíblicos sobre isso: “Nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos falaram de parte de Deus conforme eram movidos pelo Espírito Santo.” (II Pedro 1:20-21). Então, a Bíblia não se interpreta por si mesma ou em particular, como os protestantes dizem, mas a sua interpretação só pode ser feita por “homens santos”, “guiados pelo Espírito Santo”. Para nós, eles são os Santos Padres, que os batistas, às vezes, plagiam, sem ter a coragem e a sinceridade de dizer que certos ensinos pertencem a São João Crisóstomo ou a São Basilio, mas nem mesmo a eles, mas ao Espírito Santom que falou através deles, devido a sucessão herdade dos Apóstolos, mas também devido a santidade deles. Até o eunuco da Etiópia reconheceu que não poderia compreender corretamente o texto da Escritura sem guia (Atos 8:31), especialmente porque, na Bíblia, há “muitas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis torcem, para sua própria perdição.” (II Pedro 3:16).
A Tradição da Igreja não só nos deu a Bíblia, mas também a chave da sua significação, sem a qual é impossível não errar, atraindo a perda da alma. A Santa Tradição tem os seguintes elementos básicos:
  1. A Bíblia, elemento infalível e com máxima autoridade, com base na qual as outras fontes são verificadas.
  2. Os antigos símbolos de fé e confissões, incluindo os dos mártires (Mateus 10:19-20). Cristo disse que na hora do martírio, não vão ser os cristãos quem falarão, mas o Espírito Santo falara através deles. Isto significa que eles serão revelados. E se os evangelistas foram revelados e são obedecidos, também os mártires devem ser escutados.
  3. As decisões canônicas e dogmáticas dos Concílios Locais e Ecumênicos.
  4. Os escritos dos Santos Padres universalmente reconhecidos pela Igreja (por meio do principio ‘consensum patrum’ = os escritos que não contradizem a Escritura e não se contradizem entre si, mas são baseadas no consenso teológico, como obra do Espírito Santo que falou através deles, com palavras diferentes, mas da mesma forma).
  5. Os vestígios litúrgicos: ícones, iconografia, etc. Na Igreja Primitiva, existia uma definição simples para os ícones: “A Bíblia dos analfabetos”.
Os critérios em base do qual os elementos 2, 3, 4, 5 são aceitos ou rejeitados na Tradição e o mesmo critério em base do qual os livros bíblicos foram aceitos e pregados. Este critério foi formulado no século IV por São Vicêncio de Leryn: “A verdadeira Tradição é o que todas as pessoas acreditaram sempre e em todos os lugares”. A ação do Espírito Santo consiste nesta concordância universal no espaço e no tempo, que faz da Tradição uma espécie de filtro, que só aceita o que é útil e em concordância com o ensinamento oral e escrito herdado de Cristo e dos Apóstolos, rejeitando todos os escritos contrários a esses ensinamentos.
Esta Revelação não é só informação, assim como também a Bíblia não é só informação nem a Tradição é só informação, mas também espiritual - ação viva do Espírito Santo, na Igreja. O espírito da Tradição precede e da valor a informação.
  1. Através da Tradição, nos é transmitido o espírito apostólico da leitura e interpretação da Bíblia e, apenas depois, aparece a informação (o conteúdo dessas interpretações).
  2. Primeiro, foi transmitido o espírito da compreensão e formulação dos dogmas cristãos e, apenas depois encontramos o conteúdo formulado na Tradição.
Em conclusão, a Igreja poderá formular outros dogmas também, se for preciso. E o espírito da compreensão dos dogmas que vai nos manter longe das formulações erradas e contraditórias. Os romano-católicos e, sobretudo, os protestantes, não tendo isso em conta, não foram e nem hoje são capazes de operar conforme a informação dos dogmas, porque não tem mais o espírito da Tradição dogmática. Igualmente acontece com a Tradição litúrgica. O espírito e o modelo da oração foram transmitidos pelos Apóstolos aos seus discípulos e gravitavam em torno da Eucaristia. Muito antes da oficialização do cristianismo como religião (313) as orações e as práticas litúrgicas dos cristãos eram semelhantes e, às vezes idênticas, como texto e forma, as que temos hoje, mesmo sem existirem na Bíblia. Tudo isso demonstra, uma vez mais, a ação do Espírito Santo na Igreja não somente através da letra da Bíblia, mas também através da letra e espírito da Tradição da nossa Igreja Uma, Santa, Católica e Apostólica.

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