– A Ortodoxia como a Plenitude da Lei de Deus –
Em sua obra O Império do Efêmero,
o sociólogo francês Gilles Lipovetsky abalou, de certo modo, o mundo
erudito ao afirmar a moda como uma espécie de “carro-chefe” das mudanças
que se processam em nossos dias. É claro que Lipovetsky referia-se a
moda dos estilistas, mas isso me faz entender que cada vez mais se torna
verdadeira uma idéia que sempre me intrigava quando eu ainda estava na
igreja evangélica: aquilo que ocorre nos Estados Unidos e Canadá não
leva muito tempo para ser reproduzido no Brasil como última moda.
Esta
idéia me intrigava porque o que se reproduz não apenas são
acontecimentos significativos vividos pelas igrejas protestantes
norte-americanas, mas também todo tipo de novidades emergentes, desde as
modas teológicas mais esdrúxulas à alarmante quantidade de práticas de
adoração que, segundo a ala reformada calvinista apelando para a famosa
Confissão de Westminster, não passam de “invenções dos homens e
sugestões de Satanás”.
Aos
poucos fui assumindo que deveria haver algum tipo de culto que não
sofresse a alteração das doutrinas enlatadas e modas importadas de toda
natureza que invadiam as denominações evangélicas brasileiras. Algo mais
original e perene que, na minha incredulidade, ainda não sabia ser
possível existir intacto.
Hoje, o que me ocorre relaciona-se aos últimos acontecimentos dentro do
protestantismo. Trata-se do fato de evangélicos de todas as partes do
mundo – incluindo seus clérigos ou pastores como são chamados – estarem
convergindo para a fé ortodoxa em um agudo contraste com todo tipo de
moda e em franca contradição com suas doutrinas e práticas de adoração. O
que está realmente acontecendo? A esse respeito, talvez fosse bom
começar pela pergunta:
O que está acontecendo ao redor do mundo?
Eu pensava ser o único pastor evangélico brasileiro a me converter a
Ortodoxia, mas agora me vejo com um ex-colega de seminário, de
ministério pastoral, de mestrado e doutorado, assumindo a fé ortodoxa e
dizendo, assim como me ocorreu há tantos anos atrás, tratar-se de um
caminho sem volta. Ainda o ano passado, nossa pequena comunidade recebeu
pelo batismo e crisma um ex-pastor evangélico com algumas de suas
ovelhas. Isso confere com os inúmeros testemunhos de pastores
norte-americanos que ingressam na Igreja Ortodoxa, como demonstra o
livro Coming Home – Why the Protestant Clergy are becoming Orthodox (Voltando
para casa – Porque pastores protestantes estão se voltando para a
Ortodoxia - tradução livre) que contém depoimentos de pastores
anglicanos, episcopais, presbiterianos, batistas, assembleianos, e de
todo tipo de igrejas evangélicas que estão se convertendo à Ortodoxia,
alguns dos quais com suas comunidades inteiras.
Recentemente,
recebi através de e-mail o seguinte testemunho de alguém que preferi
não mencionar o nome por não conhecê-lo. Ele escreveu a um site ortodoxo
nos seguintes termos:
Bom dia,
Estou muito feliz com o ingresso no grupo, sinto que estou no caminho certo para meu aprendizado.
Vou
contar um pouco de mim, através da experiência e vivencia religiosa,
sou batizado na fé católica romana, não posso dizer que sou um assíduo
freqüentador de alguma paróquia, pois não me encaixei em nenhuma, não
por falta de fé, mas por uma certa convicção pessoal que nas igrejas não
se ministram somente a religião, costuma sim haver uma mistura de
política, interesses pessoais e clericais, uma série de fatos que ao meu
ver afastam a verdadeira fé. Não se prega textos verdadeiros e sim uma
adaptação de fatos que mudam de acordo com a sociedade, eu acho errado,
nós é que temos que nos encaixar na fé, não a fé em nós, com essas
interpretações a palavra original é perdida e modificada e com o tempo
os valores são perdidos, visto a situação da atual sociedade que
vivemos. Aos meus olhos, vejo pessoas que se movem ao seu próprio bem e
não no do próximo ou do todo, a vontade de Deus. Careço de estudos, de
exemplos. tenho fé em Cristo, acredito nele e em Maria sua mãe, acredito
também na fé que moveu muitos mártires e suas histórias servem de
exemplo e força. Nunca perdi a esperança de encontrar os verdadeiros
ensinamentos, mas toda vez que tento debater com algum religioso, ou ele
se esquiva, ou prega barbaridades como vejo na fé protestante. Acredito
que a seriedade dos Ortodoxos tenha como base os ensinamentos
originais. Perdoem-me se falei, besteiras mas é o meu ponto de vista
hoje. Sei que todos podem me ajudar e acredito que quem procura a
verdade , encontra, com justiça e merecimento.
Muito obrigado, pelas boas vindas e repito, estou muito feliz de estar no meio de vocês todos.
Ouvi recentemente de um pastor anglicano que quando se formou nos
Estados Unidos foi aconselhado por um colega de denominação a comprar
livros de teólogos ortodoxos, o que não tem hesitado em fazer,
possuindo em sua residência obras como On Human Being – A Spiritual Antropology,
de Olivier Clement, e outras, além de muitos ícones ortodoxos. Ele me
disse que esse seu colega lhe afirmou na ocasião que estaria caminhando
definitivamente para a Igreja Ortodoxa dada a crise porque passa o
protestantismo naquela nação.
A respeito deste mesmo pastor ainda tenho algo muito significativo a
contar. Ele me disse que um dos principais autores anglicanos de
Londres, chamado Michael Harper, que era um daqueles pastores que
divulgavam em muito o pentecostalismo em meio à sua igreja, também
ingressou na Ortodoxia. Ele conheceu o pastor Harper em Singapura.
Trata-se do mesmo padre ortodoxo que acolheu um ex-aluno meu de teologia
em sua capela em Londres. O fato é que, o ano passado, meu ex-aluno
ligou para dar a notícia de que agora havia se convertido à Ortodoxia
por causa do fato de que a mesmíssima liturgia que nós celebramos no
Brasil é a que o Padre Michael Harper celebra em Londres. Que alegria!
Ainda mais quando li um artigo intitulado The Waves Keep Coming in The Evanglical, Charismatic, Orthodox Axis
em que o Padre Michael Harper menciona não somente a relação entre John
Wesley, o avivamento inglês e a Igreja Ortodoxa, mas também chega a
mencionar o contato de Alexander Boddy – o iniciador do movimento
pentecostal entre os anglicanos em Londres, Singapura e outros lugares –
com a Igreja Ortodoxa. O pastor Boddy passou um tempo em um mosteiro
ortodoxo na Rússia, de onde trouxe ícones que expunha na sala de sua
residência em Londres.
Quanta
novidade, não? Seriam elas, “invenções dos homens” ou mesmo “sugestões
de Satanás”, conforme as expressões da confissão reformada calvinista de
Westminster? Tão sacrílego posicionamento está alicerçado em uma falsa
interpretação da lei de Deus responsável por dividir a lei de Moisés – e
isso não apenas para fins didáticos – naquilo que chamam de “lei moral”
(os dez mandamentos) e “lei cerimonial” (os preceitos relacionados ao
culto). Segundo os calvinistas – que são neste aspecto seguido pela
maioria dos evangélicos – somente a lei moral vigora até hoje em meio à
nova aliança instituída por Cristo, enquanto que a lei cerimonial foi
por Ele abolida. Respondamos a tão impiedosa heresia, levantando mais
uma pergunta:
Por que a fé ortodoxa está sendo assumida pelos evangélicos?
A fé ortodoxa jamais inventou, e muito menos, padronizou uma forma de
adoração. Sua liturgia é única, imutável e sem alterações não porque
tenha engessado e mantido qualquer tipo de tradicionalismo ou
conservadorismo em sua adoração, como querem alguns, mas simplesmente
porque a liturgia ortodoxa foi estabelecida pela lei de Deus conforme
escrita e instituída por Moisés nos primeiros livros da Bíblia e,
portanto, não é uma padronização humana ou uma imposição imperial de
Constantinopla, mas uma instituição divina a permanecer intacta como
atesta o próprio Jesus no sermão do monte ao afirmar:
Não penseis que vim revogar a lei... vim para cumprir (ARA)
Não cuideis que vim destruir a lei... mas cumprir (ARC)
Aqui, algumas observações precisam ser feitas. O verbo grego
‘katalysai’ é traduzido ora por destruir, ora por revogar, o que
equivale – como é o seu sentido literal – a traduzi-lo por: precipitar.
Em outras palavras, Cristo não veio para jogar a lei em um precipício a
fim de que fosse destruída ou, como é uma linguagem mais jurídica,
revogada, abrogada ou abolida. E por falar no verbo abolir, vale
ressaltar que é o verbo que, em algumas versões, aparece em Efésios 2:15
para se referir também à lei:
a lei dos mandamentos na forma de ordenanças aboliu (ARA)
a lei dos mandamentos que consistia em ordenanças desfez (ARC)
Trata-se
de uma contradição? Será que Jesus disse que a lei não seria abolida e
São Paulo disse o contrário? A esse respeito, devemos firmar que há bons
motivos para respondermos com um não a esta pergunta. O primeiro motivo
reside no fato de que o verbo utilizado por São Paulo não é o mesmo
utilizado por São Mateus ao fazer menção das palavras de Jesus no sermão
do monte. Isso pode ser confirmado tanto no texto grego como em algumas
traduções. Mas, é verdade que a isso alguém poderia objetar que se
trata de verbos com um significado sinônimo. Isso é verdade mesmo.
Todavia, o segundo motivo de não haver contradição entre as palavras de
Cristo e as de São Paulo reside em uma melhor compreensão da expressão
‘en dógmasin’ (= em ordenanças). Aquilo a que São Paulo está se
referindo como algo abolido não é a lei dos mandamentos, quer em seu
aspecto moral, quer em seu aspecto cerimonial, e sim aquilo que
“consistia em ordenanças” ou possuía “forma de ordenanças”. Eis, então,
porque a contradição entre Jesus e São Paulo é apenas aparente. E para
descobrir isto, é somente focalizar mais uma pergunta: De que
“ordenanças” falava São Paulo?
A resposta a esta pergunta vem da expressão usada por São Lucas no
livro dos Atos dos Apóstolos quando relata o episódio do primeiro
concílio da Igreja que se deu em Jerusalém. O concílio se reuniu para
resolver uma questão que havia surgido entre judeus e gentios no meio da
Igreja. Ao final deste concílio, diz São Lucas, pareceu bem ao Espírito
Santo e aos apóstolos resolver a questão através do envio de alguns
irmãos às igrejas a fim de comunicarem “as decisões tomadas pelos
apóstolos e presbíteros de Jerusalém”. Tais decisões, que os demais
concílios da Igreja continuaram a chamar de “dogmas” iniciavam toda uma
tradição oral que se estabeleceria na Igreja, a qual foi posteriormente
sendo registrada nas atas dos concílios, o que resultou na formação da
Tradição Apostólica, ou seja, o modo pelo qual os concílios
interpretaram e resolveram as questões ao longo dos primeiros séculos.
Somente a partir daí, podemos entender a intenção de São Paulo ao falar
em certa ‘abolição’ da lei dos mandamentos. Na verdade, ele estava se
referindo ao que nesta lei havia se constituído como tradição oral, isto
é, aquelas interpretações que os judeus através do sinédrio faziam para
resolver as questões surgidas, as mesmas interpretações que levaram a
formação da “tradição dos anciãos” tão condenada por Jesus – em Mateus
15, por exemplo – por causa da tendência dos fariseus em concentrar a
atenção das pessoas nos aspectos meramente externos de tais
observâncias, ou melhor, no caráter exterior dos dógmatas ou dos
dógmasin, mencionados por São Paulo como abolidos na nova aliança pelo
próprio Cristo.
Eis, então, o único modo de entender plenamente a lei, conservando-lhe a
unidade e livrando-a de interpretações que a concebem de forma
dualista, dicotômica e, portanto, fragmentada. Somente a partir do
reconhecimento de que a lei de Deus escrita é um todo indivisível, assim
como sua Lei Encarnada é uma única pessoa, se pode chegar à plenitude
da fé tanto na lei como em Cristo, sendo esta a única maneira de
entender a relação entre a antiga e a nova aliança. Esta é a plenitude
daquela, e não a sua abolição.
Portanto,
a nova aliança, o novo testamento, significa o fim da dívida humana
para com a lei de Deus, assim como de toda ordenança ou interpretação
judaica desta lei a fim de que vivamos em novidade de vida na plenitude
da lei, cuja finalidade, e não o fim, é unicamente Cristo para justiça
de todo aquele que crê no cancelamento do escrito de dívidas que
constava e ainda consta contra todo aquele que transgride a vontade de
Deus expressa de modo justo, perfeito e santo nos escritos de Moisés e
não nas decisões/ordenanças (= dógmata/dógmasin) dos judeus por causa
dos quais, disse São Paulo, “ninguém vos julgue” (Col. 2:15-16).
Parece
mesmo, que alguns evangélicos sinceros que buscam o pleno conhecimento
da verdade de todo o coração estão reconhecendo não apenas que a lei de
Deus é una, mas também que exatamente por isso nossa obediência repousa
em nos emendarmos com a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica [A
Igreja Primitiva dos Sete Concílios Ecumênicos e não apenas a Igreja
Romana]. Minha intuição, é que a razão de tudo o que está acontecendo se
relaciona ao mal-estar de uma crise crescente e inesperada nos mesmos
arraiais evangélicos que crescem desesperada e desordenadamente, como
também, às fortes inconsistências e sérias lacunas existentes em suas
interpretações bíblicas e teológicas.
Oxalá
seja Deus servido em mostrar-lhes que o dito de Jesus, tão citado por
eles, “misericórida quero, e não sacrifício” foi uma citação feita por
Cristo das profecias de Santo Oséias, o qual, estando em plena antiga
aliança, não estava com estas palavras abolindo a lei de Deus e os
sacrifícios que esta ordenava, mas apenas mostrando que o fiel
cumprimento da lei implica em não julgar o próximo, à semelhança do que
faziam os fariseus nos tempos de Jesus, e principalmente em exercer
misericórdia sobre “todos e todas” na direção dos quais a liturgia
ortodoxa sempre continuará cantando em súplicas: “Kyrie eléison”, à
semelhança do publicano de uma parábola de Cristo, cuja conclusão nos
ensina explicitamente a doutrina da justificação como uma humilde obra
da genuína fé que somente opera a partir do momento em que tudo fazemos
por amor a Cristo, um amor livre, não condicionado pelas necessidades
deste mundo – o amor por Deus sobre todas as coisas que excede a todo
entendimento.
De
fato, a Ortodoxia é um caminho sem volta e somente nela é possível
livrar-se do velho fermento dos novos fariseus! Do império do efêmero ao
imutável e incomensurável Reino do Pai, do Filho e do Espírito Santo...
Pe. Jairo
Igreja Ortodoxa Sérvia
Paróquia de São João Crisóstomo
Caruaru – PE
Nenhum comentário:
Postar um comentário