HISTORIA DE UMA RUPTURA - parte I
Archimandrite Placide Deseille
Desde
um milênio, a unidade espiritual da cristandade européia está partida.
Sua parte oriental e balcânica professam principalmente a fé ortodoxa.
Sua parte ocidental, massivamente católica romana do século XI ao século
XVI, conheceu no século XVI cisões internas, que deram nascimento às
diversas denominações protestantes. Esta divisão é o resultado de um
longo processo histórico, no curso do qual as divergências doutrinárias e
os fatores políticos e culturais estavam frequentemente lado a lado.
A CRISTANDADE INDIVISÍVEL ORIGINAL
A Igreja cristã, tal qual ela se constituía no tempo de
Pentecostes sob a condução dos apóstolos e de seus sucessores imediatos,
não era uma sociedade religiosa organizada e governada a partir de um
centro, como o que Roma se tornará mais tarde para a cristandade
ocidental. Em cada cidade evangelizada se formava uma comunidade de
fiéis que se reunia cada domingo em torno de seu bispo para celebrar a
Eucaristia. Cada uma destas comunidades era considerada não como parte
da Igreja, mas como a Igreja do Cristo feito presente e visível, em toda
sua plenitude espiritual, dado um tal lugar, Antioquia, Corinto ou Roma
por exemplo. Estas comunidades compartilhavam a mesma fé e as mesmas
concepções, fundadas sobre o Evangelho, sem prejuízo de diferenças
locais que não acrescentavam nada de essencial. Em cada cidade devia
haver apenas um bispo, e este estava tão estreitamente ligado à sua
Igreja que ele não poderia ser transferido para uma outra comunidade.
Para que a unidade entre as diversas Igrejas locais pudesse ser mantida
e para que suas identidades de fé e de disciplina fossem
salvaguardadas, era necessário que trocas frequentes se estabelecessem
entre elas, e que seus bispos se reunissem e que se deliberasse para
reolver juntos, na fidelidade ao depósito recebido, os novos problemas
que pudessem surgir. Estas assembléias de bispos requeriam uma
presidência. Eis porque em cada região, o bispo da cidade principal
obtinha a supremacia (preferência) sobre os demais. Ele recebia
geralmente o título de “metropolita”.
Assim se constituiriam as províncias eclesiásticas, que se
reagrupariam, elas próprias, em torno de centros ainda mais importantes.
Vinha-se a distinguir progressivamente cinco grandes regiões,
gravitando em torno da cadeira de Roma que ocupava o primeiro lugar,
reconhecida por todos (mesmo se, como nós o veremos, nem todos
concordassem sobre o alcance preciso deste primado), e dos patriarcas de
Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém.
Papas, Patriarcas e Metropolitas eram encarregados de velar com
solicitude sobre as Igrejas de sua jurisdição, e de presidir o sínodo
(ou concílios) provinciais ou gerais. Estes , chamados “concílios
ecumênicos”, se reuniriam quando uma heresia ou uma crise grave
ameaçasse a Igreja. Sete concílios ecumênicos, cujo primeiro foi o de
Nicéia I (325) e o último de Nicéia II (787) estiveram assim reunidos
durante o período anterior à separação da Igreja de Roma dos patriarcas
orientais.
Com exceção das Igrejas de Pérsia, da longínqua Etiópia (evangelizados
desde o século IV) e da Irlanda, a quase totalidade das Igrejas cristãs
se encontravam no império romano. Este império, que não era nem oriental
nem ocidental, e onde as Igrejas educadas falavam tão bem o grego
quanto o latim, queriam, segundo a expressão do escrivão gálio-romano
Rutilus Namatianus, “fazer do universo uma única cidade”. Ele se
estendia do Atlântico ao deserto sírio, do Reno e do Danúbio aos
desertos da África. A cristianização deste império, no século IV, apenas
reforçou este universalismo. Sem se confundir com a Igreja, o império
parecia, aos cristãos, constituir o espaço onde melhor poderia se
realizar o ideal evangélico de uma unidade espiritual transcendendo
todas as oposições étnicas e nacionais: “Não há mais nem judeu, nem
grego…pois todos vós sois um em Cristo” (Gal. 3,28).
Contrariamente ao que se diz frequente, as invasões germânicas e o
estabelecimento dos reinos bárbaros na parte ocidental do império não
miram o fim pura e simplesmente desta unidade da Europa. A deposição de
Rômulo Augusto em 476 não marcava “ o fim do império romano do Ocidente
“, mas o fim do compartilhar administrativo do império entre dois
co-imperadores, instaurados com a morte de Teodósio (395). O Ocidente
voltava a ficar sob a autoridade do imperador, re-tornado único, que
residia em Constantinopla.
A maior parte do tempo, os bárbaros tinham se instalado sobre o
território do Império a título de “federados” : os reis bárbaros eram
por sua vez chefes de seu próprio povo e generais romanos; eles
representavam a autoridade imperial sobre as terras de sua propriedade,
Os reinos oriundos de invasões bárbaras – Francos, Burgondos, Godos –
habitavam assim na órbita do império romano; uma continuidade estreita
religava assim, em Gália, o périodo merovíngeo ao período gálio-romano.
Esses reinos germânicos eram assim uma primeira realização daquilo que
Dimitri Obolensky muito exatamente chamou de Commonwealth (comunidade)
bizantina*. A dependência dos reinos bárbaros na visão do imperador,
ainda que teórica e por vezes explicitamente (re)negada, guardava uma
significação cultural e religiosa.
Quando os povos eslavos vieram se estabelecer nos Balkans devastados e
despovoados, a partir do século VII, é um estaturo análogo que, com suas
vicissitudes, se estabelecerá entre eles e Constantinopla; ele (o
estatuto) irá até mesmo à Rússia de Kiev.
Entre as Igrejas locais desta vasta Romania, quer elas sejam situadas
na sua parte ocidental quer na sua parte oriental, a comunhão subsiste
durante o primeiro milênio, à exceção de alguns períodos em que os
patriarcas heréticos ocuparam a cadeira de Constantinopla. Em Antioquia e
Alexandria, houve entrementes, depois do concílio de Calcedônia, um
patriarca monofisita ao lado daquele que continuava ligado a ortodoxia
calcedoniana.
AS PRIMEIRAS FISSURAS
O ensinamento dos bispos e dos escritores eclesiásticos que se
exprimiam em latim – Hilário de Poitiers (v. 315-v. 367), Ambrósio de
Milão (v.340-397), Cassiano de Marselha (v. 360-435), e muitos outros –
estavam em plena consonância com aqueles dos Padres gregos: Basílio de
Cesaréia (v. 329-379), Gregório de Nazianzo (v. 330-390), João
Crisóstomo (v. 344-407), etc . Os ocidentais não se diferenciavam por
vezes dos gregos, apenas por uma tendência mais moralisante, e uma menor
penetração teológica.
Esta harmonia doutrinária conheceu um primeiro atentado com o
ensinamento de Agostinho de Hipona (354-430). Estamos aqui diante de um
dos enigmas mais inquietantes da história do cristianismo. Agostinho não
tinha nada de um herético. Ele possuía, no mais alto nível, o sentido e
o amor pela unidade da Igreja. E, entretanto, sobre muitos pontos,
Agostinho abriu o pensamento cristão à novas vias que marcaram
profundamente a história do Ocidente, enquanto que elas permanecerão
quase que completamente estranhas às Igrejas não-latinas.
De um lado, Agostinho, o mais “filósofo” dos Padres da Igreja, tem uma
tendência a exaltar as capacidades da inteligência humana no que
concerne o conhecimento de Deus; Ele elaborou assim, uma teologia da
Santa Trindade que é a origem da doutrina latina segundo a qual o
Espírito Santo provém do Pai e do Filho (em latim: Filioque). A tradição
anterior ensinava apenas que o Espírito Santo retirava sua origem do
Pai, como o Filho. Os gregos permaneceram sempre a esta formulação (Jn,
15,16), e verão no Filioque uma alteração da fé apóstolica. Eles
desconfiarão de serem responsáveis por um relativo apagamento da pessoa
do Espírito Santo e de seu papel, na Igreja do Ocidente, o que ocasionou
uma certa majoração dos aspectos institucionais e jurídicos da vida da
Igreja. Desde o século V, o Filioque será geralmente admitido no
Ocidente, mais ou menos à exceção das Igrejas não-latinas; mas ele não
será inserido no símbolo da fé mais tarde.
No domínio da vida moral, Agostinho insistia fortemente sobre a
fraqueza do homem e sobre a toda-poderosa graça divina, ao ponto de
parecer sacrificar a liberdade humana em face à predestinação divina.
A personalidade genial e extremamente atraente de Agostinho, tem, com
sua própria vivacidade, fascinado o Ocidente, que em seguida o
considerou como o maior dos Padres da Igreja e se restringe quase que a
sua escola. Numa medida mais larga, o catolicismo romano e suas
dissidências, o jansenismo e o protestantismo, diferirão da ortodoxia
pelo que eles devem a Santo Agostinho. Os conflitos medievais entre o
sacerdote e o Império, a instauração do método escolástico nas
universidades medievais, o clericalismo, o anti-clericalismo na
sociedade ocidental, são diferentes títulos das heranças das sequelas do
agostinianismo.
No decorrer dos séculos IV e V, uma outra divergência começa a aparecer
entre a Igreja de Roma e as outras Igrejas. Para a união das Igrejas do
Oriente e do Ocidente, o primado reconhecido à Igreja de Roma vinha, de
um lado, de que esta Igreja tinha sido a antiga capital do Império, e
de outro lado, de que ela tinha ilustrado pela pregação e martírio dos
dois apóstolos principais Pedro e Paulo. Mas este primado inter pares
(“entre iguais”) não fazia da Igreja de Roma a cátedra (cadeira, trono)
de um governo central da Igreja universal.
Ao contrário, em Roma, desde a segunda metade do século IV,
uma concepção diferente aparecia. A Igreja romana e seu bispo
reivindicavam uma autoridade que os faria a cabeça, o órgão diretor do
governo da Igreja universal. Segundo a doutrina romana, este primado se
fundamenta sobre a vontade expressa de Cristo, que revestiu Pedro
dizendo-lhe: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”
(Mat. 16,18). O Papa de Roma não se considerava somente como o sucessor
de Pedro, já contado como o primeiro bispo de Roma, mas como o vigário
de Pedro que, de qualquer forma, se perpetua nele e governa através dele
a Igreja universal.
Esta concepção do primado, malgrado as resistências, será pouco a
pouco aceita por todo o Ocidente. As outras Igrejas se restringirão,
por essência, à concepção antiga, deixando frequentemente pairar um
certo equívoco nas suas relações com a cátedra romana.
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*Dimitri
OBOLENSKY, A comunidade bizantina na Europa Oriental, 500-1453, Londres
1974. Lembremos que o termo “bizantino”, utilizado habitualmente pelos
historiadores, é “uma denominação posterior, desconhecida dos quais
chamamos de bizantinos”. Eles se denominarão todo o tempo de romanos
(Romaîoi), eles considerarão sempre como seus soberanos os imperadores
romanos, sucessores e herdeiros dos Césares da velha Roma. O nome de
Roma guarda para eles seu prestígio tanto quanto dura o seu Império, e
as tradições do Estado romano comandarão até o fim seus pensamentos e
sua ação política” . ( Georges OSTROGORSKY, História do Estado
Bizantino, trad. J. GOUILLARD, Paris 1983, p. 53).
Link para a continuação: Parte II
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