HISTORIA DE UMA RUPTURA - parte II
Archimandrite Placide Deseille
AS CRISES DA ALTA IDADE MÉDIA
O século VII viveu o nascimento do Islam, rapidamente seguido de sua expansão devastadora, assegurada pela djihad,
a guerra santa, que permite aos árabes conquistar o império persa,
muito tempo rival temido do Império romano, assim como dos territórios
dos patriarcas de Alexandria, de Antioquia e de Jerusalém.
A partir desta época, os patriarcas destas cidades foram frequentemente
obrigados (forçados) a confiar sua administração do que restava de
seus cristãos a representantes que habitavam no local, enquanto eles
próprios deviam residir em Constantinopla. Resultará num relativo
apagamento destes patriarcas, e aquele da capital do Império, que já
tinha obtido um segundo lugar depois de Roma quando do concílio de
Calcedônia (451), tornava-se assim, de qualquer forma, o árbitro supremo
das Igrejas do Oriente.
Ao subir ao trono a dinastia isauriana (717) levará a sedimentação da
crise iconoclasta (726). Os imperadores Leon III , Constantino V
(745-775) e seus sucessores proibiram a representação do Cristo e dos
santos e a veneração dos ícones. Os opositores à doutrina imperial, os
monges sobretudo, foram aprisionados, torturados, levados à morte, como
no tempo dos imperadores pagãos.
Os papas de Roma levarão o seu apoio a esses opositores, e
romperam a comunhão com os imperadores iconoclastas. Estes reagirão
anexando ao patriarca de Constantinopla, a Calábria, a Sicília e o
Ilyricum (parte ocidental dos Balkans e norte da Grécia) que até então
dependiam da (pertenciam a) jurisdição do papa de Roma.
Ao mesmo tempo, os imperadores iconoclastas, a fim de lutar mais
eficazmente contra o avanço dos árabes, se fazem promotores de um
patriotismo grego bem distante a idéia universalista “romana” que havia
prevalecido até então, e se desinteressaram das regiões não-gregas do
Império, notadamente do norte e do centro da Itália, expostas às
empreitadas dos Lombardos.
A legitimidade da veneração dos ícones foi proclamada pelo 7º Concílio
Ecumênico de Niceia (Nicéia) em 787, e, depois de uma recidiva (queda)
do iconoclasmo a partir de 813, a doutrina ortodoxa triunfa
definitivamente em Constantinopla em 843.
A comunhão estava assim restabelecida entre Roma e o Império. Mas a
limitação da política exterior dos imperadores iconoclastas da parte
grega do Império iria levar os papas de Roma a procurar outros
protetores. Até então , os papas, desprovidos da soberania territorial,
tinham sido sujeitos leais ao Império. Em prosseguimento, ulcerados pela
anexação do Ilyricum por Constantinopla, deixados sem defesa diante dos
Lombardos, eles se voltarão para os Francos, e favorezerão, em
detrimento dos Merovingeos que tinham sempre mantido relações com
Constantinopla, o coroamento de uma nova dinastia, os Carolíngeos,
portadores de outras ambições.
Em 739, o papa Gregório III, preocupado em impedir o rei dos Lombardos
de unificar a Itália sob sua autoridade, apela a Charles martel,
prefeito do Palácio, que tentava se aproveitar da morte de Thierry IV
para suplantar os Merovingeos. Em troca de sua ajuda, ele lhe prometeu
renunciar a toda aliança com o imperador de Constantinopla, e se colocar
sob a proteçnao exclusiva do rei dos Francos. Gregório III é o último
papa que pediu ao imperador a confirmação da sua eleição. Seus
sucessores notificarão a sua (eleição) à corte franca.
Charles martel não pode satisfazer os desejos de Gregório III; mas em
754, o papa Etienne II encontra-se em França e reencontra Pepino o
Breve. Este, em 756, retoma Ravena dos Lomberdos, mas em lugar de
restituí-la a Constantinopla, a remete ao papa, jogando assim as bases
do que iria tornar-se os Estados da Igreja, que farão dos papas os
soberanos temporais independentes. Um falso celebre, a Doação de Constantino,
foi elaborada em Roma nesta época para dar uma base jurídica a esta
nova situação: o imperador Constantino teria conferido ao papa Silvestre
(314-335) os poderes imperiais sobre o Ocidente.
Em 25 de dezembro do ano 800, o papa Leon III colocava a coroa imperial
sobre a cabeça de Carlos Magno e lhe conferia o título de imperador,
numa total independência de Constantinopla. Carlos Magno, e mais tarde
os imperadores germânicos que restaurarão de qualquer forma o Império do
qual ele era o fundador, não serão, no Ocidente, co-imperadores
associados ao imperador de Constantinopla, segundo a fórmula instaurada
no passado com a morte de Teodósio (395). Em várias retomadas,
Constantinopla proporá um compromisso indo neste sentido (nesta
direção). A unidade da Romania (2) foi salvaguardado. Mas o
império Carolíngeo deseja ser o único império cristão legítimo; ele
intenta suplantar o império de Constantinopla, considerando-o como
derrotado (roto). Eis porque os teólogos de Carlos Magno vêm a condenar
como contaminados de idolatria as decisões do 7º Concílio ecumênico
sobre a veneração dos ícones, e a introduzir o Filioque no símbolo da fé
de Niceno-Constantinopla. Os papas, entrementes se oporão com lucidez a
estas medidas imprudentes destinadas a desqualificar a fé dos gregos.
A ruptura era entrementes consumada, na ordem política, entre o mundo
franco e o papado de um lado, e o antigo império romano de
Constantinopla de outro lado. Ruptura apenas política, algumas, mas se
se leva em conta o significado eminentemente teológico que havia então
no pensamento cristão da unidade do Império, expressão da unidade do
povo de Deus, esta ruptura conduziria a uma cisão propriamente
religiosa.
Na segunda metade so século IX, o antagonismo entre Roma e
Constantinopla se manifesta sobre um novo terreno: o pertencimento
juridicional dos povos eslavos que estão em via de se converter ao
cristianismo. Este novo conflito deixará traços profundos na história da
Europa.
O papa é então Nicolau I (858-867), homem enérgico, preocupado em fazer
prevalecer a concepção romana do poder do papa sobre a Igreja
universal, em limitar as intervenções das autoridades leigas nos casos
eclesiásticos e de lutar contra as tendências centrífugas que se
manifestam de um lado do episcopado ocidental. Sua ação se apoiava sobre
os falsos decretos dos papas anteriores, recentemente colocadas em
circulação.
Em Constantinopla, o patriarca é Photius (858-867 e 877-886). Sua
personalidade e os acontecimentos do seu patriarcado foram gravemente
distorcidos pelos polêmicos antiphotianos, como o estabeleceram os
historiadores recentes (3). É um homem de uma grande cultura,
profundamente ligado à fé ortodoxa e ao zelo pela Igreja. Ele tinha
plenamente percebido o esforço (determinação) que representava a
conversão dos eslavos. É sob sua iniciativa que os Santos Cirilo e
Métodio partirão para evangelizar a Grande Moravia. Sua obra morava será
finalmente arruinada e suplantada pelas empreitadas dos missionários
germâncos; mas entrementes, eles iriam traduzir em língua eslava a
liturgia e os textos bíblicos essenciais, criando para isto um alfabeto,
e lançado os fundamentos da cultura dos países eslavos. Photius se
ocupa igualmente da evangelização dos povos dos Balkans e dos Russos. Em
864, ele batiza Boris, khagan (rei, chefe ) dos búlgaros.
Mas Boris, decepcionado de não ter recebido de Constantinopla uma
hierarquia autônoma para seu povo, se voltará num determinado momento
para Roma e acolherá os missionários latinos. Photius aprende que estes
ensinavam a doutrina latina sobre a origem do Espírito Santo, e,
parece-lhe, recitavam o símbolo da fé com a adição do Filioque.
De outro lado, Nicolau I intervinha nos casos internos do patriarcado
bizantino, indo até a deposição de Photius para restabelecer sobre sua
cátedra, num contexto de intrigas eclesiásticas, o antigo patriarca
Inácio, que tinha sido contrário a demissão (861). O imperador Miguel
III e Photius reagem convocando em Constantinopla um Concílio (867),
cujos autos foram destruídos, mas que, parece, condena como herética a
doutrina do Filioque, declara irregulares as intervenções do papa na
Igreja de Constantinopla e rompe a comunicação com eles; as reclamações
foram endereçadas a Constantinopla pelos bispos ocidentais contra a
“tirania” de Nicolau I, o concílio convida o imperador Luís o
germânico a pronunciar sua deposição.
A favor de uma revolução de palácio, Photius é deposto; um novo
concílio se reúne em Constantinopla (869-870) e o condena. Este concílio
será considerado no Ocidente até os nossos dias como o 8º concílio
ecumênico. Posteriormente Photius re-entra na graça do imperador Basílio
I, um concílio se reúne ainda mais uma vez em Constantinopla em 879, em
presença dos cardeais (legados papais) do novo papa João VIII
(872-882) e reabilita Photius que tinha retomado suas funções. Ele
aceita negociar a Búlgaria que retorna à jurisdição romana, o clero
grego continuando no local. A Búlgaria obterá pois em breve sua
independência juridicional, e permanecerá na órbita de Constantinopla. O
papa João VIII escreve a Photius uma carta condenando a adição do Filioque no
símbolo, sem rejeitar a doutrina ela própria; Photius não percebe sem
dúvida esta sutileza e crê ter obtido ganho de causa. Não houve,
contrariamente a lendas tenazes, um segundo cisma photino, e a comunhão
entre Roma e Constantinopla se manteve por mais de um século.
Link para continuação: Parte III
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